Nas voltas do mundo

 



Final dos anos 50. Período turbulento na política alagoana. O Governador Muniz Falcão, eleito com amplo apoio popular não gozava de apoio das classes dominantes e nem para eles governava, gerando um descontentamento generalizado.

Um carro preto, de uma funerária de Maceió, a frente de dezenas de outros veículos, num grande cortejo, conduzia o corpo do deputado estadual Humberto Mendes, assassinado na véspera, dentro da Assembleia Legislativa, durante tiroteio, quando os deputados se preparavam para votar o impeachment contra o Governador Muniz Falcão, genro do parlamentar trucidado. Destino: Palmeira dos Índios, cidade natal da vítima, onde seria sepultado.

O historiador Douglas Apratto, afirma que o governo de Muniz Falcão foi caso único na história do Estado, em que a oligarquia alagoana não esteve representada na chefia do executivo por um dos seus quadros. Inclusive, foi um dos motivos que levaram ao célebre episódio do impeachment de Muniz Falcão, aprovado pela Assembleia Legislativa na época e rejeitada pelo Supremo, fazendo-o retornar ao Governo onze meses depois. Com isso, Muniz Falcão concluiu seu mandato, em 1961, iniciado cinco anos antes.

Nesse período turbulento da política alagoana a família Mendes, mudara-se de Major Isidoro para o distrito do Capim, município de Santana do Ipanema, pois dona Anazília, iria assumir posto de trabalho, como professora, na frente de trabalho instalada para construção de açude naquela localidade pelo DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Líder político do distrito, Enéas Vieira, conhecia seu Liô, através do Padre Cirilo que também era vigário de Major Isidoro e das cercanias. Anos depois se tornariam compadres. Seu Liô, já tocava harmônio (pequeno órgão de sala em que os tubos são substituídos por palhetas livres) nas igrejas da região, acompanhando o vigário nas festas dos padroeiros, por isso a razão de conhecer tanta gente e chamar atenção por sua deficiência visual.

Sua cegueira nunca fora limitação para buscar melhores condições de vida. Decidira ser o protagonista da sua trajetória. Desde a infância, adaptou-se rapidamente àquela deficiência. Audição privilegiada, tato aguçado, espírito de iniciativa e muita sinceridade era o lema, dizia. Cabeça ereta e firme. Inquieto, reinador e andarilho nato, fazia estripulia de todo tipo; andava de bicicleta, multi-instrumentista, jogava dominó, realizava pequenos consertos em relógios mecânicos de parede, uma de suas paixões, incluindo o relógio da torre da matriz de Senhora Santana que semanalmente dava corda e conferia seu funcionamento. Para ter acesso ao ambiente era necessário subir escadaria de madeira de quase cem degraus. Ainda hoje é assim. A torre completa tem 35 metros de altura. Esmiuçar coisas era seu estilo.

Boêmio e artista, juntamente com o tio Antônio Mendes de Major Izidoro integravam grupo musical de seresteiros, tocando cavaquinho. Apresentavam-se nas festas locais. Com sua vareta orientadora, deslocava-se sozinho pelas principais ruas das cidades. Não temia os riscos e aqui, acolá, chegava em casa machucado por algum tropeço em obstáculos ou queda acidental. Tinha senso de localização aguçadíssimo.

Após o Governador Muniz Falcão cumprir seu mandato, assumiu em seu lugar o Major Luiz Cavalcante. No início da sua gestão, como até hoje ainda acontece, demitiu boa parte de servidores que tinham sido nomeados pelo antecessor. Nesses ajustes administrativos exonerou a servidora dona Anazília.  A partir daí foi época de dificuldades para a família. O Governador Major Luiz conquistou o título de maior desafeto de seu Liô, que prometera lhe dizer umas poucas e boas.

 Com quatro filhos pequenos e a mulher grávida de mais um. Na semana de dar à luz iria receber a visita da mãe, Dona Virgínia que iria ajudá-la no período de resguardo, oriunda de Propriá. Entretanto, quando chegou no distrito, fora atropelada por veículo desgovernado na travessia da rua principal, agravando ainda mais a situação da família.

O Padre Cirilo, percebendo a dificuldade recomendou e iniciou ações para mudança da família do distrito Capim para Santana. A cidade poderia oferecer melhores oportunidades de trabalho para todos. Tratou de providenciar tudo. Requisitou a caçamba da prefeitura para transportar a mudança com o melhor motorista do município, Zé Sapo. Alugou casa e manteve alguns meses os custos. Por fim, conseguiu emprego para Zé Leônio, filho mais velho, na “Casa O Ferrageiro”, loja comercial do ramo de material de construção, ferragens e grande diversidade de produtos, de propriedade dos empresários Bartolomeu Barros e Jugurta Nepomuceno Agra, permanecendo na empresa por mais de 50 anos.

Liô criativo e cheio de ideias, vislumbrou a possibilidade de criar empresa para prestar serviços de alto-falante e iluminação elétrica para animar comunidades rurais nas épocas das festividades religiosas da região. Então, adquiriu um grupo gerador e equipamentos para prestar serviços às prefeituras nas épocas dos festejos dos padroeiros nas comunidades rurais que ainda não dispunham de energia elétrica. Deu certo.

 Aos poucos as coisas foram se organizando e a atividade ganhando fama e prestígio na região. O serviço volante de fornecimento de energia elétrica e alto-falante se consolidou, sendo necessário até contratar ajudantes.

 Como era um homem bem relacionado, ainda teve a ousadia de montar, em consórcio com Batinho, filho de Seu Zé Urbano, emissora de rádio clandestina que durou pouco mais de um ano até ser fechada pelo órgão regulador das concessões radiofônicas. Enquanto durou chamava-se "Educadora Ipanema".

Licenciado do mandato, o Governador Major Luiz Cavalcante (1961-1966),  já andava em comícios pelo interior do Estado. Chegou a vez de Dois Riachos para mais um evento em prol da sua candidatura a deputado federal. Contudo, naquele dia seu serviço de som teve problemas e precisava ser substituído rapidamente para não prejudicar o evento agendado. Então, fora recomendado por um amigo comum, seu Geraldo, gerente das Lojas Paulistas a procurar o cego Liô para alugar seu serviço de som. Parecia que o destino ia colocar frente a frente com seu maior desafeto.

Eis que chegou a sua residência comitiva do então candidato a deputado federal, Governador licenciado Major Luiz Cavalcante, acompanhado de assessores, batendo à porta da residência. Seu Geraldo, amigo comum, foi interlocutor e mediador, apresentando o problema propondo-lhe aluguel do serviço do som. Nesse momento, sua expressão foi sagaz, tomado pelas lembranças, juramentos e dificuldades guardadas anos a fio. Altivo, desabafou para toda aquela gente tudo que havia acontecido, deixando evidente seu descontentamento com o político. E, como era de costume, quando se exaltava numa conversa, de punho direito cerrado, brandiu:

- Tenho e dos bons! Mas para o senhor não empresto, não alugo, não vendo e nem dou. O senhor pensa que eu esqueci o que o senhor fez com a minha mulher. Dane-se, pois aqui não é bem-vindo! A comitiva pasmada e decepcionada retirou-se silenciosamente. Seu Geraldo ruborizou-se, não sabia o que dizer.

Padre Cirilo, protetor da família, ao saber do episódio sorriu dizendo: Eita cego danado...

Major Luiz Cavalcante foi eleito deputado federal em 1966, para o período 1967-1971. No Governo do Estado foi sucedido pelo general gaúcho João José Batista Tubino, interventor federal, nomeado pelo governo da revolução de 1964, de janeiro a agosto de 1966. De agosto de 1966 a 1971 foi nomeado pela Assembleia Legislativa o governador Antônio Simeão de Lamenha Filho.

Anos mais tarde dona Anazília retornou ao quadro dos servidores estaduais, aposentando-se como serviçal do Grupo Escolar Padre Francisco Correia. Faleceu em 2011, aos 89 anos. Liô faleceu em 1985, aos 67 anos. Padre Cirilo faleceu em 1982 aos 67 anos.

O sol nasce para todos e o amor nos proporciona chegar a lugares antes desconhecidos. Anos se passaram enquanto eu sonhava. Chegou o tempo de despertar. Levo adiante seu sinal. O maior bem que se faz a uma semente é enterrá-la. Somente assim outra árvore brotará e os campos sertanejos tornar-se-ão mais belos. A tarde se tingiu de ouro e sol.                                                                       

 

   Publicação de abril de 2014 e revisada em janeiro de 2021.

Comentários

  1. história de luta e vitórias . Bonita a narrativa

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  2. Felizes aqueles que, em vida, conseguem um troco tão bem dado como deu o cego Liô, limpando as artérias das mágoas com a injustiça dos poderosos. Não dá pra esperar o Juízo Final.
    Belo resgate, João!

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  3. Excelente narrativa histórica!

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    1. Obrigado Fernando pela sua presença constante aqui neste espaço.

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  4. Parabéns!! !!! Joãozinho!!!!!amoooo.. .lembro muito de todos..tenho boas recordações da minha adolescência juntamente com a amiga Leonia!!!.

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    1. Obrigado pela leitura, comentário e lembranças.

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  5. Bom dia Xará!
    Mais um belo registro... Autêntico.
    Parabéns

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