Vamos relembrar um grande escritor santanense que teve uma trajetória incrível. Crônica
extraída do livro “Fruta de Palma” (Crônicas Nordestinas) de Oscar Silva, primeira
edição publicada em 1953, prefácio de Tadeu Rocha. A segunda edição foi
publicada em 1990. Cascavel, PR. Páginas 29 e seguintes.
Apresentação
na orelha no livro: “Oscar Silva (1915-1991), Santanense, com alicerce no
submundo social da terra natal, é um desses nordestinos teimosos que muito se
orgulham das pedras do caminho de sua origem proletária.”
“Vindo
ao mundo na primeira grande seca do século (1915), operário de tecelagem,
balconista de botequim, integrante da PM que combateu Lampião, servidor público
civil estadual, funcionário do correio e do Ministério da Fazenda.”
“Enveredando
pela política, assumiu posição de esquerda, que lhe rendeu além de algumas
cadeias, prejuízos na vida profissional. E daí? Daí que um autêntico
pau-de-arara não recua frente aos chifres de boi brado.”
“Na
literatura, por sua vez, autodidata e petulante, muita gente não lhe iria
perdoar a ousadia do ingresso como escritor e muito menos as editoras lhe
abririam as portas. E daí? Daí quem escreve quer ser lido. E o nordestino
teimoso só encontrou um caminho: publicar às suas expensas o que fosse
escrevendo.”
A
divulgação desta crônica de Oscar Silva se dá pela importância histórica-documental
dos relatos minuciosos das manifestações carnavalescas de Santana do Ipanema nas décadas iniciais do século XX, também vivenciadas pelo escritor.
O
autor registra, inclusive, a citação de versos cantados em algumas delas. Foi
integrante do bloco carnavalesco “Negras da Costa”, discorrendo sobre a forma
de se apresentar do grupo; “... Finalmente passava o tradicional “Negras da
Costa”, do qual tive a honra de fazer parte - rapazes vestidos de negras,
saias, ancas de molambos, a girar pela cidade, dançando, rodopiando e torcendo
os quadris (...) andavam, não pelo meio da rua, mas em (...) casas onde
entravam para dançar”.
Quando
ele afirma sobre o bloco “Negras da Costa” (...) o tradicional (...) leva-nos a
crer que o bloco existia há alguns anos e se apresentava ano após ano no carnaval
santanense. Atualmente o folguedo é reconhecido como essencialmente Alagoano,
fundamentado pelo estudo do Mestre Folclorista Théo Brandão, publicado na obra
“Folguedos Natalinos de Alagoas” em 1973.
Segundo
o trabalho “Alagoas - Seus Folguedos & *Suas Danças”, publicação da
Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas, Secult, 2017, o folguedo “Negras da
Costa” permanece vivo no Município de Quebrangulo AL, berço natal do Mestre
Graciliano Ramos.
Discorre
ainda o autor de que conhecera seu Hermídio Firmo de Melo. Homem casmurro que viveu toda
existência em Santana e sem sair de casa para parte alguma. No carnaval fazia
umas cabacinhas cheirosas. Autodidata, aprendera escultura, desenho, pintura e
até bordado, confirmando assim a opinião de Hendrik Willem Van Loon
(1882-1944). “O artista é quase sempre um indivíduo solitário”. Citação de
Oscar.
O também santanense, escritor Breno Accioly,
escreveu uma crônica sobre Seu Hermídio. O conto “Natal de Seu Hermídio” fora publicado na revista semanal carioca “O
Cruzeiro” em 18.12.1943.
Voltando
ao tema principal da crônica de Oscar, além dos fatos acima, algo curioso
também se destaca: Relato nostálgico do autor em 1953 de que os carnavais dos
anos 20 e 30 não eram mais os mesmos. Será que estamos condenados a sempre achar
que o passado será sempre melhor que o presente, mesmo levando em conta as
circunstâncias particulares que cada tempo enseja em si mesmo? Sabemos que cada
época sofre influência das questões econômicas, políticas e sociais!
Que dizemos hoje dos carnavais de Santana ou de outro lugar da nossa juventude? Com frequência, ouvimos a expressão: “No meu tempo era
assim...” Na maioria das vezes em tom de lamentação; se não fora bem vivido ou
de forma saudosa; se bem vivido foi. Será
que as coisas realmente mudaram ou foi somente nosso olhar que recrudesceu? Ou nossa
inocência coletiva juvenil fora tomada de assalto pelas preocupações da sisudez da vida adulta tornando insustentável a leveza e o discernimento temporal-existencial?
Oportuna reflexão nos propõe o jornalista Juan Arias quando afirmar: “Algumas vezes me perguntam a que recorrer, nesses tempos de pessimismo e desilusão com o presente. Os filósofos nos lembram que o refúgio sonhado não está no passado, que não é nosso e não pode voltar, como também não está na utopia de um futuro que ainda não existe. Seria uma fuga. A única matéria para modelar com nossas mãos é o presente, que devemos lutar para melhorá-lo porque é nosso e não temos outro.”
João Neto
Cinzas de um Carnaval (Oscar Silva) 1953
- UM,
dois, três, quatro... Vinte e cinco.
Da mesma
forma que contávamos os dias antes do Natal ou do São João, somávamos nos dedos
os que faltavam para o carnaval.
Estávamos
ainda distantes uma quinzena e já saíamos em turmas a procura de
barro-de-louça. Subíamos barrancos, descíamos ribanceiras, Ipanema acima,
Ipanema abaixo.
Um
dia ou dois após, já estavam os nossos quintais repletos daquelas bandas de
cabeças cinzentas, cara para o sol, a secar, a secar até poder serem removidas
e usadas como formas de máscaras. Depois, eram as visitas à casa de Hermídio, o
rapaz que não punha a cabeça fora da porta, mas sabia fazer como ninguém umas
cabacinhas cheirosas. Ficávamos a olhar o Hermídio derreter a cera, meter-lhe
dentro aquelas formas de madeira parecidas com bilros, a cera talhando,
enxugando e secando a ponto de soltar de cada forma facilmente uma banda da
cabacinha. E só saíamos dali quando víamos uma série de bolinhas brancas, azuis
ou encarnadas, bem fechadas e cheias de água-flórida.
Depois
dessa espécie de “Introdução”, vinha a primeira parte do carnaval: O Zé
Pereira. Dois. Cada banda de música fazia questão fechada de apresentar o seu.
Por uma rua saía o da “Aratanha”, banda de música de mestre Juvino(finado tio
meu); por outro, ia passando “Carapeba”, a banda de Seu Queirós. Como em outros
festejos populares, os partidários se agrupavam em torno de sua banda
predileta. E era um clarinar de pistons, um matraquear de tambores, um estrugir
de bombos e o vozerio a cantar pela Rua do Sebo, da Poeira, Camuxinga ou
Monumento:
Viva Zé
Pereira!
Viva o
Carnaval!
Moça
bonita
Na janela
está!
Deixávamos a rua, quando o sono nos arrastava para
a cama. Caíamos a dormir sonhando com a cara do Zé Pereira, aquela porção de
lanterninhas acesas e conduzidas pelos homens que cantavam. Ao acordar, éramos
espectadores do subir de um pano para a segunda parte da comédia. E vinha o
entrudo. Aquele domingo, especialmente na parte da manhã, era dedicado ao
mela-mela de farinha-do-reino ou pó-de-arroz, aos banhos com as cabacinhas do
Hermídio, seringas de folha de Flandres e até com água de cuia tirada de
cacimba.
Havia um corre-corre em cada rua, em cada esquina,
em cada casa de família, em cada cacimba do Ipanema. E as risadas ecoavam aqui
e acolá, enquanto passavam homens de cara suja, cabelo fubazento e a roupa
molhada. Rapazes e moças, com as vestes manchadas do azul ou do encarnado das
cabacinhas. E todos a rir do entrudo que deram ou tinham recebido
inesperadamente.
À tarde do domingo, arrefecia um pouco o entrudo,
para dar lugar ao aparecimento dos primeiros caretas (bobos). Um relho estalava
na entrada de qualquer rua, e toda aquela artéria se movimentava para ver a
turma dos caretas. Os mascarados passavam coxeando, a disfarçar o caminhar e,
ao estalo do relho, pareciam arrulhar: “Hur! Hur! Hur!” E a garotada a correr
com um medo danado daqueles bobos.
Ao findar do domingo, costumavam surgir algumas
fantasias e um ou outro clube de moças ou crianças.
Mas, a segunda e terça-feira eram mesmo os dias
que compunham a última parte daquele carnaval: dias em que se viam, ao lado dos
caretas, clubes de mais de trinta dias de ensaio e encontros festejados, a
confetes e serpentinas.
Era carnaval com um tic de inocência coletiva.
Carnaval que ignorava Rei Momo e só aos poucos ia conhecendo o lança-perfume.
Clubes como os “Morcegos”, somente de homens (dúzia-e-meia de homens, mais ou
menos) vestidos de preto, a dançarem enfileirados e de “asas” abertas,
precedidos do baliza e puxados pela orquestra que não ia além de uma harmônica
de oito baixos. Ou como o “Cana Verde”, a cantar rua afora, numa quase
indolência de procissão:
Perguntam
as moças na janela, umas as outras:
“Que
clube é esse que brilho agora?”
Respondem
elas, umas às outras, emprazeradas:
“É o Cana
Verde que ressurgiu nesta hora!”
Passavam os demais clubes, alguns somente de moças
ou crianças, como os “Borboletas” e o “Esperança”, as figurantes trazendo à
cabeça uma borboleta artificial ou o chapéu de palha de Ouricuri, a aba
quebrada de um lado e laço verde cheio de pedrinhas douradas – clubes que, em
vez de dançar, passeavam pelo meio da rua, arrastando os pés para a frente e
para trás. Finalmente passava o tradicional “Negras da Costa”, do qual tive a
honra de fazer parte – rapazes vestidos de negras, seios e ancas de molambos, a
girar pela cidade, dançando, rodopiando, torcendo os quadris e cantando:
Fonte: arquivo asfopal |
Ô raio! Ô
Sol!
Suspende
a Lua!
Nega da
Costa,
Já anda
na rua.
Nega da
Costa
Que anda
fazendo?
- Ando na
rua,
Comendo e
bebendo
Sobrado família Cel Manoel e Sinhá Rodrigues
E era mesmo comendo e bebendo que o “Negras da
Costa” e os demais clubes andavam, não pelo meio da rua, mas em cada casa onde
entravam para dançar. O interesse dos figurantes de um clube qualquer,
interesse sentido a começar dos ensaios, era dançar na casa de Dona Sinhá
Rodrigues, do Chefe Político Benedito Melo, dos altos comerciantes e até do
próprio Padre Bulhões e aí tomar alguns cálices de vinho e comer pedaços de
pão de ló.
Era assim o Carnaval que brinquei na juventude, em
Santana do Ipanema, minha terra natal. Era esse o carnaval do sertão. Hoje, até
ali “a coisa é diferente”. De um tal passado basta apenas a recordação...
muito bom João!!!
ResponderExcluirOs humanos sempre saúdam o passado.
Obrigado pela contribuição.
ExcluirBem oportuna a publicação justamente na semana que antecederia o adiado Carnaval 2020. Como afirmo vez por outra, ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória.
ResponderExcluirValeu. Obrigado pela leitura e comentário.
ExcluirBela crônica, para passarmos pela época, ainda atônitos, pela não comemoração, como em tantas outras datas festivas nessa pandemia, pelo menos com o registro virtual para se fazer presente
ResponderExcluirValeu Fernando! Obrigado pela sua assiduidade neste espaço.
ExcluirNão sou exatamente dessa época. Mas deu pra sentir o cheiro dos cabacinhos de Seu Hermínio, deu pra sentir o mela-mela do pó de arroz, deu pra ouvir os clarins dos, dos saxofones, do matraquear dos foliões mambembes, os caretas "macabufas" estalando seus relhos e seus hurros imitando pombos esses trouxeram até mim tudo o que ia ficando pra traz. E o dizer tão dizido: "No meu tempo!" se perdendo nas esquinas da vida, ao ponto de nada, ou muito pouco, sobrar para as atuais gerações de "idosos" sentir saudade, e comentar. A não ser lendo uma clcrônica dessa e se sentindo parte dela.
ResponderExcluirConfrade Fábio Campos agradecemos sua contribuição valiosa neste espaço.
ExcluirBom dia Xará!
ResponderExcluirBelo registro...
Parabéns.