Uma mulher chamada Maria

 

                   

Maria Leopoldina(1908-1995) era uma cabocla autêntica que raramente vemos nos dias de hoje. Embora tivesse pouca instrução e hábitos incomuns aos tempos modernos, era pessoa querida, engraçada e com admirável experiência de vida. Longeva, nem sabia ao certo quantos anos tinha. A gente deduzia que se aproximava do centenário.



Maria dizia-se nossa parente. Não que eu não quisesse! Contudo, acredito que era mais pelo afeto do que por laços afins. Tinha uma voz bastante grave. Característica que lhe rendeu um apelido odiado: “Maria Berro Grosso”. Ai de quem a chamasse assim! A mulher era tomada por ira incontrolável. Esculhambava quem estivesse por perto. O repertório de palavrões e impropérios adquiridos pela raiva era-lhe diverso.



A gente já sabia e portanto, para aqueles que lhe queriam bem, era apelido impronunciável. Nós a respeitávamos e a admirávamos muito. Sua ingenuidade cabocla era notável. Maria Leopoldina morou sua vida toda na Maniçoba, que é bairro da periferia, reduto remanescente de negros e indígenas da formação ancestral dos povos da ribeira do Panema.

Meus avós maternos João e Virgínia Felix da Silva, agricultores e criadores de pequenos animais, também eram nativos. Igualmente meu tio Abílio, servidor público municipal e exímio tocador de realejo de boca nas horas vagas. Os moradores da Maniçoba e do Bebedouro podiam se orgulhar, pois tinham em comum o quintal mais belo de toda a cidade: O Rio Ipanema que corria barulhento e misterioso, espremido entre os barrancos, pedras, seixos e corredeiras. A luz prateada da lua cheia refletida à flor d'água acalentava os sonhadores e adormecia os homens cansados. Nem o cometa halley era tão brilhante.

Maria era como se fosse uma avó que eu já não tinha mais. Era uma mulher destemida. Se estivesse em casa, as portas permaneciam abertas em quaisquer horários. Seus principais deslocamentos eram feitos com os pés descalços. Inclusive, nessa condição, fez inúmeras romarias a Juazeiro do Norte do padre Cícero e ao povoado Frexeiras, município de São João PE, ao santuário popular de Santa Quitéria.

Além da nossa família, tinha grande amizade à família de Carlos Gabriel da Silva, seu "Carrito". Tradicional comerciante da Rua Antônio Tavares e depois defronte à praça São Pedro. Quando não estava nas suas costumeiras romarias, estava lá em casa ou casa de seu Carrito. Sua tez era negra, assim como seus longos cabelos. Dançava com habilidade e leveza! Não perdia uma farra! Gostava de alegria! Seus longos vestidos eram coloridos e bem rodados.

Quando a tevê preto e branco era novidade, nos anos 70, minha mãe com muito esforço conseguiu comprar um aparelho. Era um luxo! Tevê naquele tempo além de eletrodoméstico era um móvel com pés. Recordo-me até da marca: Empire State. Maria era muito curiosa e esperta, porém ingênua para compreender o funcionamento daquela novidade tecnológica! Tinha dificuldades para entender como as imagens e os sons chegavam até o aparelho. Aliás, para captar alguma programação era necessária muita paciência.

A antena “comodoro” tinha uns três metros de envergadura, montada no mastro de uns sete metros de altura ou mais, amparada por três fios de arame, do topo ao solo, para dar sustentação e proteção contra os ventos. Para melhorar a captação do sinal era adicionado dispositivo chamado "amplimatic" que era acessório para ampliar e melhorar o sinal captado da tevê tupi de São Paulo, da estação retransmissora na serra Caiçara, de Maravilha AL. Ainda não havia retransmissão da tevê globo na região. Eram necessários alguns homens para levantar o mastro da antena. O sinal, com toda essa mão de obra, era muito ruim! Ver imagens e ouvir sons contínuos exigia muita paciência.

Certa vez, eu fui tomar banho para ir ao colégio e a deixei prestando atenção na tevê para ver se aparecia alguma imagem. Depois de algum tempo, gritei do banheiro:

- Mariiiiiia, a imagem já apareceu?

Ela respondeu: - Não que o padre ainda não chegou!

- Eu ri demais com essa resposta. Nunca mais esqueci.


O tempo foi passando e as coisas foram mudando e a Maria envelhecendo. Doente, já não andava mais sozinha.

Certo dia, tive uma intensa vontade de revê-la e fui até a sua residência na Maniçoba. Sua casa mais parecia uma fortaleza pronta para enfrentar quaisquer intempéries ou conflito armado. Seu filho, construíra-lhe uma casa e em vez de tijolos, utilizou blocos de rocha granítica.

Encontrei-a cega, morando sozinha. Não quis ninguém em sua companhia. Seu filho morava vizinho e lhe prestava assistência. Confesso que fiquei comovido com a sua forma de vida. Todavia, sua única lamentação era não poder fazer as suas longas viagens a Juazeiro do Norte e ao distrito de Frexeiras, São João PE, que era o seu verdadeiro lazer; rezar e cantar as longas ladainhas e ofícios de Nossa Senhora nas novenas, quaresma e outras celebrações.

Maria não perdia velório! Ai de quem morresse! Sua presença era garantida. Maria, literalmente “bebia o defunto”. Ajudava qualquer família nesse momento doloroso, desde que tivesse uma pinga e um cafezinho com bolachas. Prantear os mortos era sua especialidade.

Numa segunda visita, seu estado de saúde havia piorado. Perguntei-a se tinha algum desejo que gostaria de realizar?

Respondeu-me prontamente:

-Ainda quero comer uma buchada!

Não lhe prometi nada naquele momento, mas achei que o desejo era razoável e eu poderia ajudar a torná-lo realidade.

Algum tempo depois fui lhe dar a notícia de que o seu pedido iria se concretizar. Finalmente iria comer a tão desejada “buchada”. Fiquei meio receoso se aquela “velha cabocla” aguentaria comer um prato típico tão forte. Uma disenteria naquela circunstância poderia ser um risco a sua vida. Prato típico do interior do Nordeste a "buchada" é uma panelada de vísceras e intestinos do carneiro - ou de bode - cuidadosamente preparados.

Com a ajuda de meu irmão mais velho, Zé Leônio, compramos um carneiro para a festança e naquele dia Maria Leopoldina pode se fartar. Comeu tudo que quis. Resistiu bem. Tantas viessem!

O tempo foi passando e eu comecei a trabalhar em outras cidades até que soube que a Maria havia falecido. A notícia chegou-me alguns dias depois. Lamentamos sua morte! Encerrou-se seu ciclo. Eis uma mulher simples que iluminou caminhos por onde passou. Há uma luz que cintila no sideral.


 Publicação de junho de 2006, revisada em dezembro de 2020.

 

 

 

Comentários

  1. Comove-me ler relatos tão reais assim. Uma vida assim MARIA desenhada, esboçada, tracejada. Criando forma, cores, luz-e-sombra, momentos luz, momentos sombra, na "tela" de papel, na mão do artista JOÃO das letras . Vida esmaecendo...Até desbotar, até descolorir como na música de Toquinho. Parabéns João Neto Félix!

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  2. Tantas "Marias" passaram por nossas vidas, com suas personalidades inesquecíveis. A sua lembra -me de outras as quais conheci e guardam muita semelhança. Belo registro.

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    1. " Maria, Maria é um dom. Uma certa magia..." Obrigado pelo comentário.

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  3. São Marias como a Berro Grosso que deixam marcas indeléveis em nossas vidas.

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    1. "É tão bonito quando a gente sente que a gente é tanta gente aonde quer que a gente vá..." Obrigado pelo comentário.

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