Nas asas do vento

 

 A notícia da morte de Marquinhos foi lamentável. Sem nenhum histórico de doença mais séria nos seus 26 anos, foi rapidamente derrotado pela leucemia.  Algo assim que parece que surgiu do nada, feito um furacão; arrasando abruptamente e impiedosamente a vida e os sonhos da sua tenra idade.


Marcos Francelino dos Santos (1957-1983)


De pronto, fui atingido por uma angústia indescritível, agindo como um jabuti, quando percebe movimento inesperado e se recolhe na carapaça e no silêncio de si mesmo tentando entender o indecifrável.

Certo de que aquilo não mudaria nada, comecei a fazer um retrospecto das vivências que nos irmanava juntamente com a certeza de que nem tudo nesta vida pode ser explicado. De consolo me restou a assertiva contundente da escritora e jornalista Clarice Lispector(1920-1977) que “viver ultrapassa qualquer entendimento”.

Marquinhos tinha qualidades que eu admirava e que, de certa forma, muitas me faltavam até aquele momento: alegre, extrovertido, violonista hábil e titular do jovem time de futebol de campo, alvirrubro “Independente Futebol Clube” de Bastião Amaral, time que se originou da categoria juvenil do Ipiranga nos anos 70. O time do “Independente” despontou, naqueles anos, como terceira força e revelação do futebol santanense, afora os veteranos e rivais times Ipanema e Ipiranga. Pela qualidade do seu futebol Marcos não tardou a integrar o escrete.




Ipiranguinha - Em pé: Levi (de seu Moreninho), Aderval (irmão de Djalma Carvalho), Messias (de Genésio, primo meu), Cachaça (lá do Cachimbo/Santa Luzia), Dotô, Ivan Falcão, Germano, Zé de Mariá e Sebastião Amaral (Técnico). Agachados: Motorzinho (de seu Conrado), Marquinhos (de Breno), Mindinho, Doda (de Evilásio), Remilton (do Ferrageiro) e Didi.

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Bastião Amaral, que morava na mesma rua que nós, - Nossa Senhora de Lourdes - era apaixonado pelo futebol, depois da criação de passarinhos, claro! Sua casa tinha um alpendre com mais de 30 gaiolas de pássaros de várias espécies. Todas as manhãs, quem andava naquele trecho ouvia a sinfonia pássara, que não era interrompida nem pelos latidos dos bravos cães de guarda de Seu Mileno Ferreira que morava defronte sua casa e que assustava os transeuntes desavisados andando na calçada, inclusive eu. Ah, meu Deus, não sei quantos sustos tomei!!! Comecei a treinar meu autocontrole naquela calçada, tentando ignorar os latidos próximos e assustadores dos cães.

Ao contrário de Marquinhos, embora eu gostasse de futebol, só conseguia vaga para jogar no campo de várzea gramado atrás da casa de seu Evilásio Brito, no time de fora. Além de jogar no segundo escalão, disputava espaço com as águas que escorriam no meio do campo que desciam da lavagem dos carros do posto de José Pinto. Cid e Zé Carlos de Seu Evilásio que eram colegas de classe do colégio estadual e craques do primeiro escalão diziam para me consolar: menino, você jogou bem hoje! Eu ficava todo ancho!

Na maior parte do tempo, Marcos, que era o quarto dos sete filhos – Marleny, Mailde, Mailson, Marcos, Marise, Ana Maria e César – do popular e admirado casal Breno e Celina, tomava conta da bodega, na mesma rua, que eu assiduamente frequentava. Embora ele fosse mais velho alguns anos, era como um irmão. Pessoa com quem eu tinha afinidade, embora nem eu soubesse o porquê. Simplesmente gostava. Na venda a gente estudava, ria, cantava, conversava e jogava sinuca.

Na sua casa, no quarto dos homens, várias páginas rasgadas da "revista placar" com fotos de jogadores do Botafogo, time da sua paixão, enfeitavam as paredes. Uma em especial se destacava, a de Manfrini - que também jogou no Fluminense -, pois se achava muito parecido com ele por ser galã.

Mesmo meu pai sendo violonista e cavaquinista, não foi com ele que tive os primeiros contatos com os instrumentos musicais e sim com o Marquinhos. Eu ficava impressionado como ele tocava bem as músicas “O divã”(Ouça) e o “O homem” (Ouça) de Roberto e Erasmo Carlos. Nunca esqueci a interpretação emocionada dessas canções ao som do seu violão verde giannini. Ainda ouço seu dedilhar elegante nas cordas do pinho. Eventualmente, quando toco essas canções no meu violão a minha mente voa...

Apenas uma coisa que ele se surpreendia comigo: as disputas parelhas de sinuca de oito bolas. Cada jogador com quatro bolas da mesma cor tenta encaçapar as bolas do adversário, com direito a uma jogada por vez. Quem conseguisse encestar a bola da jogada tinha direito a continuar jogando. Quando não restasse mais bolas do adversário era o vencedor.

Certo dia, encontrei Marquinhos triste e com as mãos estropiadas, inchadas e cheias de uns pontos pretos. Indaguei-o sobre aquilo. Quase em pranto, contou-me o que acontecera: Tinha ido ao sítio de seu pai, atrás do Serrote do Gonçalinho para pagar aos trabalhadores rurais pelos serviços executados. Na volta, homens a cavalo confundiram-no com ladrão que estavam à procura e o perseguiram.

Amedrontado, pôs-se a correr no meio do mato. Esbaforido e rápido, pulou uma cerca de arame farpado de cinco fios, porém se deparou à frente com um pé de babão. Não houve como parar a tempo de evitar a colisão; suas mãos foram usadas para proteger o corpo, esbarrando no mandacaru. Os espinhos atingiram as palmas das mãos, entraram na pele e quebraram as pontas na agonia da defesa.

Dona Celina aplicou óleo de pequi durante vários dias para desinflamar e auxiliar na retirada das pontas dos espinhos um a um. Foi uma peleja. A bem da verdade, os espinhos não foram extraídos totalmente; nem das suas mãos e muito menos da sua vida. Porém, nada disso impediu que tivesse presença radiosa enquanto neste mundo viveu.

Após a mudança da família para Maceió em 1978, reencontrei-o apenas duas vezes. A última em dezembro de 1982, próximo ao seu falecimento. A ordem natural da vida é que, a despeito da dor, os filhos sepultem seus pais. Não o contrário! É incomensurável o sofrimento do pai ou mãe que sepulta um filho. Entretanto, que sabemos nós dos mistérios insondáveis para emitir vãs opiniões? Toda pessoa tem uma missão a cumprir nesta terra ainda que sua existência seja breve.

Todas as vezes que retorno ao cemitério Santa Sofia visito seu túmulo. Repouse em paz! Saio pensativo e em silêncio. Ouço o sibilar do vento soprando solenemente.

 

Janeiro de 2021

Comentários

  1. Boas lembranças! Parece que foi ontem João . Não lembro do Marquinho mas do Independente, do Bastião , seus pássaros, o campinho que eu joguei muito !
    cheguei a ir treinar no campo do Estadual com o Bastião mas perdi a vaga de centroavante pro Agnaldo .

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    1. Coisas da vida, né? Obrigado por sua participação aqui neste espaço.

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  2. Ninguém sabe o valor de um momento – mesmo o simples dedilhar das cordas de um violão – até que se torne uma memória. Parabéns, João, pela comovida homenagem a seu amigo.

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  3. "Achei bacano, uma pessoa tem que gostar muito de outro, para descrever tudo tão bem. O cara fez uma escrita zangada pra botar na internet"
    Breno Ângelo

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    1. Gostei bastante do relato e das lembranças de um passado um pouco distante. Por ser um pouco mais velho, recordo de Sebastião e dos seus passarinhos engaiolados fazendo festas com os seus cânticos.
      Carvalho, Jose de Melo.

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    2. Valeu Carvalho ! Obrigado pelo leitura e comentário.

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  4. Lembro perfeitamente de Marquinhos, seu jeito sempre alegre, brincalhão, amigo e, embora não fosse de minha turma, eu frequentava muito a casa de D. Celina, pois César estudou comigo do 1° ao 8° ano e eu, ele e João Nobre tínhamos uma espécie de imandade, andávamos juntos pra escola e estávamos sempre juntos nos trabalhos esolares, tanto q os três são botafoguenses, time de Marquinhos a até hj nutrimos e uma grande amizade.

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    1. Valeu Júnior. O João Nobre me disse a mesma coisa. Inclusive eu nem lembrava desse detalhe dos botafoguenses. Conversei com o Pangaré e ele me lembrou de um detalhe curioso. Marquinhos era o rei da embaixadinha. Fazia mil de uma rodada só. Eu nunca passei de vinte. Tinha domínio e autocontrole de sobra. Obrigado por sua contribuição.

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  5. Bela homenagem João, pois mesmo sem o ter conhecido lamento sua morte tão precose 😔

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