Aquele ano foi, sem dúvida, o meu melhor Natal de todos para o menino João. É o mais simbólico e, por isso mesmo, inesquecível, entre tantos. Revirando os esconderijos abissais das minhas memórias que se encontram distantes e perto ao mesmo tempo, sempre o encontro reinante ainda que silencioso, fragmentado e embaçado. É estranho: sinto que sou seu, porém não me reconheço na imagem. O que nos une é a imanência que permanece intensa e vibrante. Ainda que, como criança, não entendendo o sentido intrínseco do Natal, era influenciado pela força invisível das tradições e pelo entusiasmo religioso da minha família.
Nossa casa era pequena, mas
suficiente. Antes de se chegar à calçada do passeio público, havia um pequeno jardim,
atravessado por um passadiço que dava acesso à rua de nome de Santa. Naquela
manhã meu pai trouxe uma caixa enorme que despertava minha curiosidade. O clima
já era de Natal!
Não tenho palavras para descrever a
surpresa e a alegria que tive ao constatar que eu havia ganho de presente, um
velocípede vermelho. Um modelo diferente do tradicional. Na parte de trás tinha
uma pequena plataforma que simulava um bagageiro, quase no nível das rodas traseiras,
mas era apenas enfeite. Mal cabia um tijolo comum. Parecia ser maior do que
realmente era. Os pedais tracionadores eram integrados à roda dianteira. Eu fiquei
maravilhado pelo presente e imensamente feliz.
Foram dias em êxtase! Eu dormia e
acordava com o brinquedo ao lado. Porém, o ser humano é volúvel e eu queria ultrapassar
as fronteiras do portão da minha casa. Eu queria guiar, pedalar em todo o
passeio da calçada. Aquele trecho da rua era uma grande ladeira. A descida seria
muito boa, mas a subida seria um sufoco que tirava a graça do brinquedo. Enfim,
nem tudo são flores. A solução seria buscar alternativas e andar nas ruas
laterais e planas.
Eu começava a olhar e a fazer
descobertas do mundo do meu jeito particular, observando tudo ao redor. Agora seria necessário extrapolar os limites das calçadas. As imediações das ruas ainda pareciam um
sítio, visto que a avenida Martins Vieira, que cruzava nossa rua, estava inacabada e dali em diante não havia calçamento somente chão de piçarra vermelha esburacado pela força
das enxurradas de verão. Na rua que se formava não havia sequência contígua de casas.
Ainda eram evidentes resquícios de capoeira, mato rasteiro, ervas e arbustos.
Ao adolescente era permitido se
afastar um pouco de casa. Não havia nenhum problema. Eu me deslocava com o
triciclo para o meu local predileto de passeio e lazer. Antes da chegada era
obrigatório percorrer e apreciar toda a extensão da cerca de arame farpados que
protegia o quintal da casa de seu Diógenes Wanderley. Sobre a cerca crescia e
se alastrava a trepadeira nativa melão-de-são-caetano, embelezando o caminho. Eu
gostava de olhar o contraste das cores e de saborear as sementes vermelhas e
adocicadas do pequeno fruto.
Bem próximo, defronte à residência
do casal Hamilton Amaral e Terezinha Simões, havia um imenso terreno baldio.
Servia de passagem e atalho para pessoas que se dirigiam as ruas adjacentes
ainda em desenvolvimento. O trajeto marcado e encaliçado que se tornava caminho
pelo pisoteio constante de quem passava pra lá e pra cá. Ali era a estrada que eu
ia e voltava, minha rota especial. Os obstáculos naturais do terreno, como
pequenas elevações e curvas temperavam a aventura. Seguir aqueles caminhos com
o meu velocípede era minha maior diversão e aprendizado. Acho que ali se
iniciou, inconscientemente, meu desejo de avistar as estradas sob muitas
perspectivas. Treinar a compreensão da diversidade das coisas. Eu só sei disso hoje!
Em ambos os lados da beira do caminho havia em
abundância um mato cheiroso chamado velame e a guanxuma roxa que produzia pequenas
flores brancas e lilases. Era muito procurada porque suas flores brotavam em pequenos
talos de uns 40 a 50 centímetros e quando se juntava as touceiras, se
transformavam em vassouras rudimentares que serviam à varrição dos terrenos
ásperos das ruas. Os garis preferiam-nas pela eficiência.
A planta mais incrível de todas era algodão
de seda, um arbusto leitoso de folhas largas que produzia flores e fruto,
parecendo um pequeno balão que se abria, quando maduro,
contendo
numerosas sementes plumosas que se dispersavam ao bel-prazer dos ventos. Como a
natureza é incrível! Era muito bonito ver as sementes alçando o ar, ganhando
altura e se perdendo do meu olhar indo em busca de outras terras onde brotariam
novas plantas reiniciando o ciclo. Ainda hoje vemos essa planta às margens das rodovias
sertanejas.
As crianças
zoadentas da rua se reuniriam saltitantes para assistirem ao acendimento das
luzes que ocorreria às dezoito horas. Na hora certa colocamos para tocar na
radiola o elepê da belíssima Ave Maria de Schubert. As crianças estavam inquietas e ansiosas. No mesmo instante em que acendemos as luzes a gritaria da meninada
foi uníssona. Meu velocípede vermelho já estava estacionado no meu quarto
aguardando a jornada do dia seguinte.
Noite Feliz! Feliz Natal!!
Dezembro de 2020
Que bonito ! através da sua descrição viajei aos natais da infância
ResponderExcluirA descrição fiel dos espaços, os eventos naturais do tempo e da botânica. O arco íris se pintando dentro da cabeça de quem lê. E não é um arco íris qualquer, é o mais belo que já vi! A ênfase muda tudo. Pra mim não foi a noite de natal, não foi o brinquedo especial, o que ficou foi o menino, assim como fui eu, descobrindo o mundo, cortando seu cordão umbilical com a casa, na estrada logo ali em frente. Feliz Natal, cronista, João Neto Félix!
ResponderExcluirMais uma bela narrativa, que nos faz viajar também às nossas mais remotas memórias, ainda que, como você menciona, fragmentadas, para revivermos uma época "mágica" em nossa existência.
ResponderExcluirBoa noite Xará!
ResponderExcluirMais um belo registro! Bem ao seu modo... Descrito de forma real, faz-no reviver esse momento.
Parabéns
Muito bom, João! Relato vivo de uma criança que ainda pulsa, brinca e sonha dentro de você. Parabéns!
ResponderExcluirBelíssimo!
ResponderExcluirParabéns meu amigo. Como é velo reviver estas lindas histórias.
ResponderExcluirParabebs meu amigo. Como é bom reviver estas belas histórias.
ResponderExcluirUm menino extasiado vai desbravando o mundo, montado em seu velocípede (presente de natal). Excelente!
ResponderExcluirÉ sempre bom reler os seus escritos,Xará !!
ResponderExcluirLindo Natal!! Noite Feliz na Av.Nossa Senhora de Lourdes..
Parabéns!
Boa noite Xará!
ResponderExcluirMais um belo registro, fiel e com detalhes...Parabéns