Na tarde das rosas vermelhas

 

Cheguei cedo para a visita! Fui ao abrigo dos velhos "Casa dos Velhinhos" para visitar D. Maria, mãe de uma amiga. Não foi a primeira vez. Há anos, fui voluntário no abrigo São Vicente de Paulo em Santana do Ipanema. Nós fazíamos de tudo que fosse necessário e estivesse ao alcance. A minha afinidade com a velhice é antiga. Talvez seja o moço velho que há em cada um de nós.


Naquele grande casarão tem uma grande varanda interna. Na área central há um grande e bem cuidado jardim, onde reinam exuberantes, grandes roseiras vermelhas. Logo encontrei dona Maria sentada numa cadeira de rodas no corredor, junto às colegas do abrigo. Ela ficou surpresa com a minha visita! Estava também dona Alice, uma velhinha simpática, daquelas que todo mundo gosta. Sua alegria e inocência são contagiantes! A convidamos para ficar conosco.


De repente, tive a ideia de dar uma volta no abrigo, em companhia de dona Maria, empurrando sua cadeira de rodas, percorrendo a grande varanda para conhecer melhor o ambiente. Percebi os detalhes das lindas roseiras vermelhas e todo seu esplendor. O Jardim é muito bem cuidado! Fiquei encantado com a quantidade de rosas vermelhas! Fazia tempo que não via um jardim tão repleto de rosas.


Dona Maria mora no abrigo, porém não percebe a beleza das rosas! Chamo sua atenção. Simplesmente olha para as rosas e pra mim, rir discretamente, disfarça e redireciona seu olhar perdido... Consciente, diz que não gosta dali. Gostaria de ir pra sua casa.


Aos poucos fui percebendo que Alice é o xodó do casarão. Todos a cumprimentam e a abraçam aos beijos. Ela recebe a todos com muito carinho e alegria. Está ali há mais de 30 anos, confessou. Não tem ninguém no mundo, além do carinho e afago dos funcionários e visitantes.


Confessou que foi doméstica durante muitos anos em casa de uma família, até a morte dos patrões. Após o episódio e sem ninguém, não teve alternativa senão morar no abrigo. Quem iria me acolher, senão eles, afirma! Diz que se sente feliz ali. Tem muitas bonecas! As bonecas são suas filhas e não dão trabalho. De vez em quando lhes dá banho e as acalenta para dormir. Vivem a dormir o tempo todo. Com sorriso maroto diz que se sente bela!


Dona Maria está junto conosco. Apenas a observa, sorri e balança a cabeça, negativamente, querendo dizer, talvez, que fosse loucura dela! Tenta falar, mas não consegue. Dona Maria depois de um acidente vascular cerebral tem dificuldade para falar. Eu quase não entendo o que ela diz. Sinto uma tristeza, uma angústia no seu olhar. Tentei animá-la.


Nesse momento, ouvi um choro forte. Outra moradora da casa chora copiosamente. Fico comovido. Fui ao seu encontrou. Ela murmura algo que não entendo. Tenta me dizer o que sente, mas não consigo traduzir. Parece ter problemas mentais e físicos e está numa cadeira de rodas. Quando pergunto se quer dar uma volta no abrigo na cadeira, ela gesticula positivamente e se cala.


Chego à conclusão que queremos, sem exceção, afeto, carinho e atenção. Por pouco que seja! Queremos nos sentir amados, ainda que com pequenos gestos. E ali estão as rosas vermelhas no centro do jardim, perto de nós, silenciosas e deslumbrantes. São as testemunhas do entardecer daquelas vidas. Logo terão de murchar e dar lugar a outras rosas. E assim a vida continua nas rosas, em você, em mim, nas Marias e nas Alices. Somos partes de um todo que só se completa pela solidariedade e cooperação.


Penso que, se um dia eu for morar em algum abrigo, gostaria que meus conhecidos fossem me visitar. Que falassem do mundo lá de fora, dos acontecimentos... Dos sonhos que se realizaram; das esperanças que não foram perdidas; dos amores bem-sucedidos; das crianças que nasceram; das flores e rosas que brotaram na primavera e dos pássaros que ainda cantam nas árvores por aí...

 

Publicação de dezembro de 2006, revisada em novembro de 2020

 

Comentários

  1. Drummond dizia que “há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons”. Com sua crônica, João, fica claro que nem precisa disso. Bastam dois dedos de atenção e carinho.

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    1. Obrigado ao grande cronista Hayton pelos comentários poéticos e elogiosos.

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  2. Boas lembranças !
    As vezes padre Cirilo celebrava lá e meu pai me levava.

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    1. É verdade! Também tive oportunidade de participar de algumas missas celebradas pelo Padre Cirilo no abrigo São Vicente de Paulo. Obrigado pelo seu comentário.

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  3. Como diria uma voz a me falar: "Ah, a velhice, que sacanagem, que chatice. Mas, como não traumatizá-la? . Talvez preenchendo o tempo que a antecede com o que de melhor nos for possível semear, para que, quiçá, possamos, quando ela chegar, colhermos os frutos e continuarmos a sonhar".

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    1. Obrigado Fernando pelo seu comentário reflexivo.

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  4. Não tem como não se comover com o que aqui está escrito. Aqui, as palavras adquirem a conotação necessária, a denotação impregnante. Nas redes sociais alguém costuma brincar dizendo: "Deus viu o que você apagou!" A você, você: João Neto! Digo eu: Deus, viu o que você escreveu (em 2006) ...e (2020) refez! Parabéns, digo eu! Quem sabe, também Ele, o diga!

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    1. Obrigado pelo seu elogioso comentário. Sinto-me lisonjeado.

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  5. Que delicadeza de texto. Adorei!!!!

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  6. Boa noite Xará!
    Belo registro. Parabéns.

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  7. Obrigado Xará pela leitura e comentário.

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