À sombra do angico-branco (sexta colocação no concurso de contos da ACALA/UBE - Arapiraca AL)

Arapiraca é uma variedade de angico-branco

                 Cheguei numa noite chuvosa de inverno mais sertanejo do que agrestino, meio perdido no anonimato do frio de inverno de julho de 2002. A mesma noite que me espantava e que me atingia em cheio, também era sinônimo de proteção. Não me fiz grandes promessas, mas no meu peito cálido irradiava disposição de recomeço e a reconquista de um lugar na rua do sol. Um cantinho discreto à sombra da árvore ancestral, de preferência onde eu pudesse ver, ouvir e me encantar com o chilreado de pássaros que freneticamente se agitavam ao amanhecer.

        Não sei quantas vezes me perdi no meio de ruas desconhecidas e me vi sozinho entre tanta gente andando apressada de um lado para outro. Era mais um no meio da multidão. Além de mim, poucos transeuntes se aventuravam a sentar no banco da praça da prefeitura a conversar com os próprios pensamentos.  Eu tinha consciência de que cada dia trazia consigo novas possibilidades e desafios, lavados com o suor sagrado do trabalho muitas vezes ignorado e banalizado.

      Só eu sei as esquinas que atravessei das ruas do centro, faminto de alimento e de crenças na solidão da noite, após um dia estafante de trabalho mesmo acreditando que no dia seguinte tudo seria diferente. Nem sempre foi. Como saber sem a indulgência do risco? Todavia, nem tudo se ganha, nem tudo se perde. Tudo é questão de se manter enérgico e perseverante ainda que sangrando no fio da navalha.

            O vale obscuro do pavor ainda tive de atravessar, mais de uma vez. Sem opção, verguei meu medo com cuidado, repleto da suficiência que nutre a motivação do caminhar indiferente às razões. Obliterei abismos reais e imaginários.

            Como nada é pra sempre; nem as coisas boas, nem as ruins, aos poucos, os tempos das amenidades foram chegando e trazendo expectativas de dias melhores.  Reiterei encontros despretensiosos com a dispersa gente valendo amizade. Vamos dar as mãos e cantar. O resumo é de cada um!

   Música! A força que levanta os bailarinos reuniu os fragmentos das minhas cinzas, aguada e fecundada pelo labor diário e então o milagre se fez.   A fênix-arara alçou o voo libertador e soberano, sobrevoando o morro santo e o planalto das revigoradas perspectivas, emoções e sentimentos até o pouso sereno na árvore de imensos galhos abertos para o descanso revigorante. A música me salvou de mim mesmo.

            Assim como eu a cidade evoluiu. Da rua do sol, passos nostálgicos se foram pra nunca mais. Ressurgiram passos largos que caminham nas manhãs da avenida do futuro. É tempo de contemplação das tardes no Itapuã, da beleza do pôr do sol e descortinar estonteante das noites enluaradas. O tempo mudou. O meu eu passageiro se libertou do encantado labirinto da dúvida. Decifrou enigmas, desprendeu-se e fincou raízes. Rabiscos se reescreveram, árvore se plantou e o rebento nasceu.   “Essa Arapiraca, por enquanto, também é a minha casa”.

            O milagre já é estar aqui pra ser. Das dores, a paixão de amadurecer nas asas do destino. Desamarrei a linha do horizonte na calmaria do limiar da senescência. O que serei somente o novo arrebol revelará. Os fios dos cabelos pratearam, nasceram rugas, adeus às fugas e às ilusões.

         Quando eu não estiver mais aqui, quero descansar à sombra do angico-branco do agreste ou da craibeira do sertão, contudo não se engane, são meros devaneios e deslumbramentos. Estou firme com meus dois pés no chão. Enfim, são tempos de serenidade.

 

         Dezembro de 2020
      

( Conto participante do "Concurso de Contos e Poesias" da ACALA - Academia Arapiraquense de Letras e UBE-União Brasileira de Escritores ) Edição 2020, 6ª colocação. ) 


                  







Comentários

  1. Bom dia Xará!
    Com requintes, traduziu um pouco da vida cotidiana do povo de Arapiraca e ainda colocou, de forma emotiva, o sentimento de quando você chegou aqui, que é e foi o sentimentos de todos nós que não somos nativos.
    Parabéns e um abraço

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    1. Obrigado pelos comentários. Arapiraca também é a nossa casa.

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  2. Mais uma narrativa difícil de ler apenas uma vez, pela beleza de sua construção, o que nos faz relê-la de imediato e deixá-la ao alcance dos dedos para rebuscá-la mais tantas outras vezes.
    Parabéns pelo Certificado da ACALA e UBE.

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  3. Parabéns pela narrativa tão emotiva, que nos dar prazer em ler com se fossemos um personagem da mesma!

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  4. O bom do escritor é isso: a possibilidade de dizer coisas que outros "viveram", gostaram de ter "vivido", gostariam de ter vivido, ou vivenciaram coisas parecidas. Enfim, aos mágicos, os saltimbancos das letras nossos Parabéns. Parabéns! Amigo e confrade João Neto Félix, pela premiação, e pela escrita!

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    1. Sinto-me lisonjeado com as suas palavras nobre confrade Fábio Campos. Obrigado, sinceramente.

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