Ainda hoje ao acordar recordo-me da rotina de meu pai ao pé do rádio, nas primeiras horas da manhã, ouvindo os programas que ele gostava. Minha mãe, incomodada pela altura do volume, dizia: home, está muito alto! Abaixe isso, vai acordar os meninos e os vizinhos! Resmungar, era sua resposta! Ignorava, depois diminuía bem pouco. Todos continuavam ouvindo tudo do mesmo jeito. O alarde matinal não dava trégua, dia após dia. Acho que sou do mesmo jeito!
Havia uma razão: hábito sertanejo de acordar cedo e a essência musical instigante e inseparável. Marcas indeléveis gravadas n’alma. Minha mãe gostava de cantar. Era corista na igreja de Santo Antônio de Major Izidoro. Seu Liô era músico; tocava cavaquinho no grupo de seresteiros e harmonista do coral da igreja. Conheceram-se nos ensaios.
O velho rádio se transformava em radiola quando era acoplado a um toca-discos. Convertia-se em rádio-vitrola: solução perfeita para ouvir os elepês dos artistas preferidos. A aptidão intuitiva já se assanhava por vontade própria me levando por inesgotáveis caminhos musicais.
Naquela manhã de 1975 o rádio tocava sucessos na emissora globo, Rio. Eu havia saído para comprar algo a pedido da minha mãe na bodega de Lelé. Quando retornei ouvi um lindo trecho de uma canção na voz inconfundível de Moacir Franco. Eu já conhecia algumas canções do artista. Ainda que a música estivesse no final da execução, consegui memorizar letra e melodia do refrão. Nunca mais a esqueci.
“Vem viver a vida amor,
Que o tempo que passou
Não volta mais
Sonhos, a vida vai levar
Só vale o que ficar
No coração”
Não consegui ouvi-la novamente. E o tempo passou. De vez em quando eu me lembrava da situação depois esquecia novamente. Não havia o que fazer senão deixar assim mesmo. O que não tem remédio; remediado está, diz o ditado. E tudo foi guardado no baú das memórias. Rapidamente o tempo passou.
1990. Eu já era homem feito. Muita coisa havia mudado, mas eu ainda não havia elucidado o enigma daquela canção antiga. Continuo ouvindo rádio e muita música. Agora tenho até um violão. Arrisquei-me no estudo autodidata. As vitrolas evoluíram. Os elepês estão em desuso. O advento dos cedês revolucionou o mercado fonográfico no Brasil e no mundo.
Em 1990 eu era diretor social da AABB. A presidência do clube era exercida por Maherval Chaves. Após contatos e negociações com empresária em Maceió, foi contratado show de Moacir Franco no clube para o dia 04.11.1990, aproveitando uma data disponível visto que o artista faria apresentação em Maceió no dia anterior.
Escalado para buscar o artista e equipe, o destino colocar-me-ia ao encontro do artista. São surpresas que a vida nos proporciona sem que a gente tenha domínio sobre os fatos e acontecimentos.
Confesso que estava ansioso, mas tentei dissimular, agindo normalmente. Chegando ao hotel onde o artista estava hospedado me identifiquei e fiquei aguardando. Enfim, compareceram Moacir Franco, esposa, empresária de Maceió e o tecladista que o acompanhava. No caminho, procurei me manter da forma mais natural possível. Foram muitas conversas musicais. Entre uma conversa e outra, ouvimos Belchior no som do veículo. O cantor cearense também era admirado pelo artista por suas lindas canções urbanas, como assim o definiu.
Na chegada, fomos ao clube para que ele conferisse o som se estava adequado à exigência contratada. Depois, fui deixá-los no hotel Ribeira do Panema, como estava previsto.
No clube havia muita gente correndo pra lá e pra cá finalizando as providências para a grande noite. Foi um desafio organizar e realizar um evento desse nível. Na quadra descoberta, distribuíram-se mesas, deixando livre o centro, onde foi montado um tablado para amplo destaque e visão do artista, facilitando a interação com o público. Enfim, chegou o momento!
Moacir Franco, além de cantor famoso, também desenvolvera habilidades de humorista, apresentador e ator, conferindo-lhe competências interpretativas incomuns ao lidar com emoções, empatia e encantamento do público. Foi o que ocorreu: o show foi um sucesso. Emocionou e foi emocionado. Interagiu magistralmente com a plateia e nos proporcionou espetáculo jamais visto.
Um dos momentos marcantes do evento foi a performance da canção “Suave é a noite”. Bela versão de “Tender Is the Night”, música de Sammy Fain e Paul Francis Webster. Incluída da trilha sonora do filme homônimo, recebeu indicação para o prêmio oscar de melhor canção original de 1962. A versão brasileira foi composta por Nazareno de Brito e se tornou grande sucesso na voz de Moacyr Franco.
Show de Moacir Franco na AABB. Canção "Suave é a noite" Gravação Fernando Chagas.
Nas pausas vocais, enquanto o teclado assumia a condução da música, Moacir visitou várias mesas, tirando algumas senhoras para breve momento de dança e descontração, proporcionando instantes surpreendentes e de deslumbramento aos espectadores. Por um instante, tirou a senhora Laura Chagas para dançar e, nesse ínterim, ajoelhou-se aos seus pés em reverência. Foi o ápice do show, levando o público ao delírio.
Show Moacir Franco na AABB. Imagem Fernando Chagas
Ao final do espetáculo, rendeu graças ao céu estrelado e exaltou o fascinante luar sertanejo, agradecendo aos santanenses e a sua empresária por uma noite tão especial como há muito não vivia.
Após o evento, no hotel, ainda tivemos os últimos instantes de conversas que aguardei estrategicamente para solucionar uma dúvida antiga. No dia seguinte, taxista os levariam de volta a Maceió. Eu teria que retornar ao trabalho.
Revirei o baú das memórias em busca de reminiscências que vagavam ermos caminhos. Então, narrei ao cantor o que me ocorrera quando ouvi sua canção na rádio globo que ainda permanecia sem conclusão.
Ele me perguntou: Qual era a música?
Eu respondi que para decifrar o enigma eu teria que cantar, pois conhecia apenas o refrão. Claro que fiquei acanhado, pois reconheço minhas limitações vocais. Digamos que sou quebra-galho, apenas! Privilégio é perguntar ao próprio artista sobre alguma dúvida das suas gravações! Um luxo!
Assim fiz: cantei o pequeno trecho que eu sabia.
Ele respondeu, de pronto: a canção é “vinte anos”, composição de Alberto Luiz.
Ainda bem que ele não fez qualquer referência ao meu canto! Nem precisava, porque eu saberia da resposta.
Alberto Luiz(Alberto Cirino Gomes) é cantor e compositor autor de várias canções de sucesso, dentre elas: Balada nº 7(Mané Garrinha), Banda da ilusão, Oração de um jovem triste, Soleado; a música do céu(versão) e Vinte anos, dentre outras.
Por fim, o cantor anotou seu telefone num pedaço de papel, entregou-me e me pediu para entrar em contato com seu assistente musical para me mandar o elepê que continha aquela gravação. Fez-me ainda um pedido: para lhe mandar umas sementes de algaroba para plantar em seu sítio. Assim foi feito.
Despedimo-nos. Nunca mais voltamos a ter qualquer tipo de contato. É a vida! Foram momentos únicos e vividos intensamente.
Atualmente, com a tecnologia que dispomos, é possível identificar a maioria das dúvidas musicais em poucos minutos.
Recentemente, lembrei-me de que o amigo aposentado do BB, Fernando Chagas, que havia trabalhado na cidade, à época, havia gravado o show em cartucho de fita VHS. Para nossa sorte ele ainda mantém o material em boas condições de uso e gentilmente me cedeu trecho para enriquecer esse relato. Grato pelo registro inolvidável. A tecnologia de vídeo cassete entrou em declínio em 1997.
A beleza do destino já se faz presente durante a viagem.
Refrão da canção "Vinte anos" que levou quinze anos para ser totalmente conhecida.
“Vem viver a vida amor,
Que o tempo que passou
Não volta mais”
“Sonhos, a vida vai levar
Só vale o que ficar
No coração”
Outubro, 2020
Excelente registro, João, de um momento ímpar que tivemos oportunidade de vivenciar. Tive a felicidade de estar em Santana do Ipanema nessa época e poder assistir e registrar um show maravilhoso, desse artista múltiplo, pelo qual tenho grande admiração por sua obra. E lá se vão 30 anos desse momento que ficou especialmente gravado em minha memória e agora revivido por esse bela crônica.
ResponderExcluirAssim como eu, você também vivenciou o show como momento único ! Suas gravações tornaram ainda melhores as lembranças maravilhosas daquele dia. Obrigado.
ExcluirCaro João Neto,
ResponderExcluirEssa bela crônica mexeu muito comigo, trazendo-me à lembrança "tempos idos e vividos". E bem vividos. Sou daquele tempo de românticos-raiz (a moda agora é ser tudo raiz, embora ache que abusam dessa expressão, usando-a muita vez sem pé nem cabeça, embora raiz). Nessa ida de Moacir a Santana, para lhe ser franco, tenho modesta e humílima participação. Já eu morava metade em Poço das Trincheiras metade em Maceió, onde a família já estava. Quando você foi buscar a fera no hotel eu fui com você e lembro da urbanidade com que Franco nos acolheu, brincalhão, risonho sempre. E como você e ele são do ramo a conversa rolou sobre música. Acho que você fez isso pra me tirar de foco, já que conhece minha brutalidade sobre musica, salvo de sinos, em dobre de finados, até que você, em outra crônica, me deu magistral lição sobre toque de sinos.
Mas voltemos ao encontro com o menestrel. Lá para as tantas ele mostrou preocupação com a (im)perícia dos músicos que o acompanhariam e você aparteou, com aquele seu jeito de João Neto, afiançando os artistas. E para ser enfático garantiu: "nós jamais faríamos isso com você. E ele, de bate-pronto : FARIAM, SIM!!!, estou acostumado com essa conversa'. E sempre ridente, referiu alguns episódios ruins.
Eu fiquei em Maceió e vc levou,em seu carro, a estrela. E o resultado está em sua crônica: uma apoteose!
Abraços do
Antonio Sobrinho
Tonho Cupim, você é demais! Confesso que alguns detalhes relatados por você eu já nem me lembrava mais. Sua participação foi grande valia para mim. Foram momentos maravilhosos. Obrigado pelas lembranças.
ExcluirExcelente relato, mostrando a capacidade que a vida tem de nos surpreender .
ResponderExcluirObrigado Oliveira, pela leitura e reflexão.
ExcluirGrandes momentos assim são inesquecíveis, ainda mais quando o artista é investido de simplicidade e carisma. Moacyr Franco é um intérprete espetacular!
ResponderExcluirMais uma bela história, caro João!
Júnior, são experiências inesquecíveis. Obrigado.
Excluirs2
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