À amiga Goretti
Brandão
Na nossa caminhada evolutiva o que nos diferencia dos animais é
inicialmente, andar com dois pés. Isto nos deu uma mobilidade incrível. Liberou
as mãos... Finalmente a característica mais importante: o pensar. Somos livres,
pois fazemos uso da potência de pensar e agir. Biologicamente, a função da
espécie é sobreviver, procriar e gerar descendentes. E assim agiram os
ancestrais, há milhares e milhares de anos. Desde as gerações mais primitivas,
passando pelo homem de neandertal e até o homo sapiens.
Em algumas eras, poucas mudanças ocorreram em milhares de anos, como por
exemplo, a descoberta do machado de pedra, facilitando a caça e a abundância de
alimentos por muitas gerações, por conseguinte, a sobrevivência da espécie. A
raça que não se adaptou, simplesmente sumiu.
As exigências, aos poucos foram acontecendo para propiciar alguma
organização social. Nos grupos, a liderança do macho mais forte sempre foi
característica fundamental, além do poder de acasalar com todas as fêmeas. A
mulher ficou com a função de procriar e cuidar dos filhos. O homem de caçar,
alimentar seu grupo e protegê-lo. O amor se fazia presente como força bruta,
latente, mas ainda sem muitas exigências e de forma rudimentar. A família vai
surgir com necessidade de identificar a herança genética e patrimonial.
Ainda hoje, está preservado, dentro de cada um de nós os mesmos
princípios básicos dos ancestrais humanos. Porém, bem sabemos que muita coisa
mudou: a família mudou, a mulher conquistou seu espaço. Como diz Camões:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança:
todo mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades...”
A historiadora Mary del Priore acha que os brasileiros ainda são
românticos. Ela vasculhou 500 anos, do período colonial até o fim do século XX,
para escrever uma história do amor no Brasil. A pesquisadora mostra como homens
e mulheres brasileiros foram transformando suas ideias sobre o amor, casamento
e paixão.
Por exemplo: até o final XIX, o
casamento era o lugar da amizade entre marido e mulher, jamais do amor. Nos
matrimônios arranjados por interesses de família, regra até o século XIX quando
estava em vigor à lei do dote, o lugar da paixão era o adultério. A reviravolta
que fez do casamento o lugar da relação por amor ocorreu por causa da forte
repercussão do romantismo do Brasil, a partir do século XIX.
Na base da ideia de amor romântico, associavam-se pela primeira vez, amor
e liberdade como coisas desejáveis. As ideias contidas no amor romântico
apontam os laços entre liberdade e realização pessoal.
A historiadora, porém, acha que o mesmo romantismo que mudou a vida
cotidiana dos brasileiros tornou-se motivo de infelicidade, por multiplicar
expectativas frustradas. “Hoje queremos tudo ao mesmo tempo: o amor, a segurança,
a fidelidade, a monogamia e as vertigens da liberdade. Fundado só no sentimento
que sobrou do amor romântico, o mais frágil que existe, o casal está condenado
à brevidade, à crise”, diz a historiadora.
O grande contraste entre o discurso romântico e a realidade da vida dos
amantes pode ser um dos algozes atuais na vida a dois. Para historiadora Mary
Del Priore, o amor nunca é ideal, sempre traz com ele a dependência, a
rejeição, a servidão, o sacrifício e a transfiguração. “O sonho hoje é o do
manter o casal apaixonado, fiel. Mas vivendo numa sociedade na qual o
individualismo é cada vez mais estimulado, as pessoas deixam de se sacrificar
pela família ou pelo grupo social, como ocorria no passado. A realização
pessoal vem em primeiro lugar. O que as pessoas esquecem é que tal escolha nos
torna responsáveis diretos por fazer durar o amor” conta Mary, para quem o
século XIX se abriu como um suspiro romântico e se fechou com o higienismo frio
de confessores e médicos. “o sexo se tornou uma nova teologia. Só se fala nele
e se fala mal, com vulgaridade.
São saborosos os episódios do passado amoroso dos brasileiros: a lua de
mel foi instituída no fim do século XIX para poupar a família de momento
constrangedor, aquele em que o casal faria sexo pela primeira vez. Nessa época,
a posição sexual mais indicada para a procriação era com a mulher ajoelhada, de
costas. Os médicos recomendavam o “uso parcimonioso do esperma”, o que levava
os maridos a anotar em diários o número das relações sexuais com as esposas. A
nudez era evitada a todo custo e sexo deveria acontecer no escuro.
No início do século XIX, o ideal de um casal era viver em castidade, o
que permitia aos homens “procurar o prazer fora de casa e fazia com que fossem
toleradas as infidelidades dos casados, sobretudo dos senhores com as escravas.
“Fazia-se amor com a esposa quando se queria descendência; o restante do tempo,
era com a outra”. A fidelidade conjugal era sempre tarefa feminina”. Não havia
espaço para o amor erótico e muitas mulheres se entregavam aos maridos por amor
a Deus.
O casamento chegou ao Brasil colônia como herança da tradição europeia –
um contrato indissolúvel que tinha como objetivo a transmissão de patrimônio.
Cabia às famílias a escolha dos cônjuges de forma a não dispersar fortunas.
O casamento começou a se modificar a partir de segunda metade do século
XIX, com a chegada do amor romântico, a valorização do dote da mulher e a
importância da beleza feminina. Se hoje o ideal estético são magreza e peitos
turbinados, no tempo dos corpos inteiramente cobertos eram pés e mãos que
atraíam os olhares a atenção dos homens. “Mãos tinham de ser longas e
possuidoras de dedos finos acabando em unhas arredondadas e transparentes”. Já
os pés deveriam ser pequenos, finos, terminando em ponta. Nesse tempo, pisar no
pé de uma mulher era um galanteio. As mulheres deveriam gentilmente tirar o
chinelo ou descalçar o mule como forma de dar início ao ritual de sedução.
As transformações do século XX mostram como o ideal de esposa se
modificou até os anos 60, quando ainda vigoravam relações assimétricas que
previam esposas dedicadas à felicidade conjugal. Um casamento feliz significava
um marido satisfeito, ao lado de uma perfeita dona de casa que se vestia
sobriamente, não era muito vaidosa e, principalmente, concordava sempre com
ele.
Até que vieram a pílula anticoncepcional, a revolução sexual, o divórcio,
o direito ao prazer e a transformação dos costumes. O amor, porém, não foi
destituído do seu protagonismo nem por 450 anos de história: O amor mantém-se
um sentimento sutil e importante e continua fazendo sonhar, e muito, muitos
homens e mulheres.
Como se vê, a Maria tem razão! O João também tem razão! Todos estão
certos. Tudo é absolutamente relativo na nossa história afetiva! É injusto,
pois, atribuir aos homens todas as mazelas das traições, da inexistência dos
sentimentos e do amor. É a trajetória evolutiva do homem ao encontro dele
mesmo. A história bonita ou feia, com ou sem razão, concorde ou não com ela, é
ponto de vista de cada um. Os fatos estão a mostra. Não nos culpe injustamente!
Certamente, avançamos pouco
comparando certos comportamentos com os parentes primitivos. Outras mudamos quase
nada... Enfim, carregamos o vírus imbatível da safadeza. Maria tem razão, mas
de quem é a culpa? Se é que há algum culpado! Dessa geração isoladamente? Faço
um pedido: Não nos reduza ao mínimo! Não somos pequenos, somos grandes, pois a
despeito das adversidades, muitos lutam para serem fiéis aos princípios e à
coerência.
Veja o que diz o poeta Fernando
Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no
mínimo que fazes. E assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive...”
O amor precisa ser contraditório para continuar existindo. Sem
contradição, torna-se finito. Camões o descreveu muito bem: “O amor é fogo que
arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente; é um contentamento
descontente; é dor que desatina sem doer... O poetinha Vinícius também: “E
quando mais tarde me procure a morte, angústia de quem vive, ou a solidão fim
de quem ama, eu possa dizer do amor que tive, que não seja eterno posto que é
chama, mas que seja infinito enquanto dure...” Há homens que nunca deixaram de
seguir seu coração: eu sou um deles...
Publicação de outubro de 2005, revisada em novembro de 2020
Muito bom este texto. Novamente quedo-me surpreso, não tê-lo lido a 15 anos que ele existe! E continua muito atual, diante de tanta mudança ocorrida na sociedade em curto espaço de tempo. Séculos precisavam passar pra ocorrer mudança, agora.
ResponderExcluirObrigado pela leitura e comentário. Algumas coisas mudaram, outras nem tanto ! Vamos em frente...
ExcluirSimplesmente, fantástico. Muito legal.
ResponderExcluirSimplesmente, fantástico.
ResponderExcluirMuito legal e muito bem escrito. Parabéns, João