Repare: sobre coisas de homem, João e Maria, eu e você...

 



                      À amiga Goretti Brandão


      Maria diz que homem nenhum presta! Quando vê qualquer muié com a bundinha empinada vai logo se assanhando. Rapidamente esquece o juramento de amor e de fidelidade eterna. É tudo igual, tudo “carça 40”. Será? A bem da verdade acho que a Maria tem razão. A Maria tem razão quando diz que está incutido no homem, entranhado em suas carnes, desde tempos imemoriais, o vírus da safadeza. Está ali incubado, aguardando tão somente o tempo de despertar, agir e decepcionar... Será que somos os mestres das desilusões?

Na nossa caminhada evolutiva o que nos diferencia dos animais é inicialmente, andar com dois pés. Isto nos deu uma mobilidade incrível. Liberou as mãos... Finalmente a característica mais importante: o pensar. Somos livres, pois fazemos uso da potência de pensar e agir. Biologicamente, a função da espécie é sobreviver, procriar e gerar descendentes. E assim agiram os ancestrais, há milhares e milhares de anos. Desde as gerações mais primitivas, passando pelo homem de neandertal e até o homo sapiens.

Em algumas eras, poucas mudanças ocorreram em milhares de anos, como por exemplo, a descoberta do machado de pedra, facilitando a caça e a abundância de alimentos por muitas gerações, por conseguinte, a sobrevivência da espécie. A raça que não se adaptou, simplesmente sumiu.

As exigências, aos poucos foram acontecendo para propiciar alguma organização social. Nos grupos, a liderança do macho mais forte sempre foi característica fundamental, além do poder de acasalar com todas as fêmeas. A mulher ficou com a função de procriar e cuidar dos filhos. O homem de caçar, alimentar seu grupo e protegê-lo. O amor se fazia presente como força bruta, latente, mas ainda sem muitas exigências e de forma rudimentar. A família vai surgir com necessidade de identificar a herança genética e patrimonial.

Ainda hoje, está preservado, dentro de cada um de nós os mesmos princípios básicos dos ancestrais humanos. Porém, bem sabemos que muita coisa mudou: a família mudou, a mulher conquistou seu espaço. Como diz Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança: todo mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades...”

A historiadora Mary del Priore acha que os brasileiros ainda são românticos. Ela vasculhou 500 anos, do período colonial até o fim do século XX, para escrever uma história do amor no Brasil. A pesquisadora mostra como homens e mulheres brasileiros foram transformando suas ideias sobre o amor, casamento e paixão.

 Por exemplo: até o final XIX, o casamento era o lugar da amizade entre marido e mulher, jamais do amor. Nos matrimônios arranjados por interesses de família, regra até o século XIX quando estava em vigor à lei do dote, o lugar da paixão era o adultério. A reviravolta que fez do casamento o lugar da relação por amor ocorreu por causa da forte repercussão do romantismo do Brasil, a partir do século XIX.

Na base da ideia de amor romântico, associavam-se pela primeira vez, amor e liberdade como coisas desejáveis. As ideias contidas no amor romântico apontam os laços entre liberdade e realização pessoal.

A historiadora, porém, acha que o mesmo romantismo que mudou a vida cotidiana dos brasileiros tornou-se motivo de infelicidade, por multiplicar expectativas frustradas. “Hoje queremos tudo ao mesmo tempo: o amor, a segurança, a fidelidade, a monogamia e as vertigens da liberdade. Fundado só no sentimento que sobrou do amor romântico, o mais frágil que existe, o casal está condenado à brevidade, à crise”, diz a historiadora.

O grande contraste entre o discurso romântico e a realidade da vida dos amantes pode ser um dos algozes atuais na vida a dois. Para historiadora Mary Del Priore, o amor nunca é ideal, sempre traz com ele a dependência, a rejeição, a servidão, o sacrifício e a transfiguração. “O sonho hoje é o do manter o casal apaixonado, fiel. Mas vivendo numa sociedade na qual o individualismo é cada vez mais estimulado, as pessoas deixam de se sacrificar pela família ou pelo grupo social, como ocorria no passado. A realização pessoal vem em primeiro lugar. O que as pessoas esquecem é que tal escolha nos torna responsáveis diretos por fazer durar o amor” conta Mary, para quem o século XIX se abriu como um suspiro romântico e se fechou com o higienismo frio de confessores e médicos. “o sexo se tornou uma nova teologia. Só se fala nele e se fala mal, com vulgaridade.

São saborosos os episódios do passado amoroso dos brasileiros: a lua de mel foi instituída no fim do século XIX para poupar a família de momento constrangedor, aquele em que o casal faria sexo pela primeira vez. Nessa época, a posição sexual mais indicada para a procriação era com a mulher ajoelhada, de costas. Os médicos recomendavam o “uso parcimonioso do esperma”, o que levava os maridos a anotar em diários o número das relações sexuais com as esposas. A nudez era evitada a todo custo e sexo deveria acontecer no escuro.

No início do século XIX, o ideal de um casal era viver em castidade, o que permitia aos homens “procurar o prazer fora de casa e fazia com que fossem toleradas as infidelidades dos casados, sobretudo dos senhores com as escravas. “Fazia-se amor com a esposa quando se queria descendência; o restante do tempo, era com a outra”. A fidelidade conjugal era sempre tarefa feminina”. Não havia espaço para o amor erótico e muitas mulheres se entregavam aos maridos por amor a Deus.

O casamento chegou ao Brasil colônia como herança da tradição europeia – um contrato indissolúvel que tinha como objetivo a transmissão de patrimônio. Cabia às famílias a escolha dos cônjuges de forma a não dispersar fortunas.

O casamento começou a se modificar a partir de segunda metade do século XIX, com a chegada do amor romântico, a valorização do dote da mulher e a importância da beleza feminina. Se hoje o ideal estético são magreza e peitos turbinados, no tempo dos corpos inteiramente cobertos eram pés e mãos que atraíam os olhares a atenção dos homens. “Mãos tinham de ser longas e possuidoras de dedos finos acabando em unhas arredondadas e transparentes”. Já os pés deveriam ser pequenos, finos, terminando em ponta. Nesse tempo, pisar no pé de uma mulher era um galanteio. As mulheres deveriam gentilmente tirar o chinelo ou descalçar o mule como forma de dar início ao ritual de sedução.

As transformações do século XX mostram como o ideal de esposa se modificou até os anos 60, quando ainda vigoravam relações assimétricas que previam esposas dedicadas à felicidade conjugal. Um casamento feliz significava um marido satisfeito, ao lado de uma perfeita dona de casa que se vestia sobriamente, não era muito vaidosa e, principalmente, concordava sempre com ele.

Até que vieram a pílula anticoncepcional, a revolução sexual, o divórcio, o direito ao prazer e a transformação dos costumes. O amor, porém, não foi destituído do seu protagonismo nem por 450 anos de história: O amor mantém-se um sentimento sutil e importante e continua fazendo sonhar, e muito, muitos homens e mulheres.

Como se vê, a Maria tem razão! O João também tem razão! Todos estão certos. Tudo é absolutamente relativo na nossa história afetiva! É injusto, pois, atribuir aos homens todas as mazelas das traições, da inexistência dos sentimentos e do amor. É a trajetória evolutiva do homem ao encontro dele mesmo. A história bonita ou feia, com ou sem razão, concorde ou não com ela, é ponto de vista de cada um. Os fatos estão a mostra. Não nos culpe injustamente!


         Não se defenda, mulher, acusando os homens de ineficazes na arte de amar. Na construção da sociedade, injustamente, a mulher sempre exerceu papel secundário, é um fato! Somos todos um, caminhando em busca da relação ideal, do sentimento ideal, do amor ideal. Se vamos conquistar ou não, não sabemos. Somente as gerações futuras poderão constatar em que ponto evoluímos.

Certamente, avançamos pouco comparando certos comportamentos com os parentes primitivos. Outras mudamos quase nada... Enfim, carregamos o vírus imbatível da safadeza. Maria tem razão, mas de quem é a culpa? Se é que há algum culpado! Dessa geração isoladamente? Faço um pedido: Não nos reduza ao mínimo! Não somos pequenos, somos grandes, pois a despeito das adversidades, muitos lutam para serem fiéis aos princípios e à coerência.

 Veja o que diz o poeta Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. E assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive...”

O amor precisa ser contraditório para continuar existindo. Sem contradição, torna-se finito. Camões o descreveu muito bem: “O amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer... O poetinha Vinícius também: “E quando mais tarde me procure a morte, angústia de quem vive, ou a solidão fim de quem ama, eu possa dizer do amor que tive, que não seja eterno posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure...” Há homens que nunca deixaram de seguir seu coração: eu sou um deles...

 

Publicação de outubro de 2005, revisada em novembro de 2020

Comentários

  1. Muito bom este texto. Novamente quedo-me surpreso, não tê-lo lido a 15 anos que ele existe! E continua muito atual, diante de tanta mudança ocorrida na sociedade em curto espaço de tempo. Séculos precisavam passar pra ocorrer mudança, agora.

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    1. Obrigado pela leitura e comentário. Algumas coisas mudaram, outras nem tanto ! Vamos em frente...

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  2. Simplesmente, fantástico. Muito legal.

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  3. Simplesmente, fantástico.
    Muito legal e muito bem escrito. Parabéns, João

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