Guerra e paz

 


Reserva Biológica da Pedra Talhada, Quebrangulo AL



Subi às montanhas alagoanas para cumprir o trabalho designado. Lembrei do ideal libertário que corre em nossas veias, herdado de Zumbi dos Palmares e tantos outros guerreiros anônimos.

A cidade Quebrangulo está localizada numa região de muitas serras, dentre as mais altas de Alagoas e, por isso mesmo, foi reduto de quilombo que abrigava escravos fugidos a exemplo dos Quilombos dos Palmares. Seu líder era chamado de “quebra ângulo”, verbete de matriz africana que quer dizer “caçador de javalis”. Assim, no aportuguesamento das palavras temos “Quebrangulo”.

Ali, naquelas montanhas, há refúgio para homens e almas. No cume da reserva biológica da Pedra Talhada, estamos mais perto do céu, nos esconderijos de ancestrais escravizados que lutaram pela liberdade. O verde intenso dos montes e o azul do céu aos poucos se misturam. O rio Paraíba do Meio percorre todo o vale, vagarosamente, contornando obstáculos até se entregar à Lagoa Manguaba, no município de Pilar.

O que nos espera cada dia? Quem poderá dizer? Aquela manhã parecia igual a tantas outras. Aguardava-me intenso dia de trabalho e as preocupações da lida diária. O banco do Brasil fora minha escola desde menino. Assim, não houve outro caminho senão o do crescer, continuamente. Como tatuagem, os valores humanos e profissionais são marcas que não se dissipam. De alma bancária sigo o itinerário.

  De tanto ouvir histórias e situações dramáticas ocorridas em assaltos em bancos por aí afora, procurei me preparar, por assim dizer, para que se algum dia acontecesse comigo eu, pelo menos, mantivesse a calma. Foi tudo o que pedi a Deus. Mesmo na minha pequenez, fui atendido em dobro.

Naquele dia de verão intenso, após quarenta minutos de tiroteio dentro e fora do banco, saímos como reféns numa situação desesperadora de fogo cruzado. Eu, consciente que de minhas ações dependia a minha vida, dos colegas de trabalho e clientes. Procurei me manter forte, apesar do medo, num monólogo que demorou uma eternidade e que me revelaria que a vida, não obstante bela e grandiosa, não é mais que um instante de sopro divino personificado numa gota fugaz de uma porção existencial.

Percorremos os montes quebrangulenses que se apresentavam, agora a contragosto, carregando os tinos e desatinos. “Só resisti porque nasci num pé de serra e quem vem da minha terra resistência é profissão.” (Accioly Neto) Caminhamos tanto para lugar nenhum que passei a duvidar se chegaríamos a algum destino. Aquela árvore que eu via ao longe na serra e que desejava vê-la de perto, agora era real.

Caminhada, silêncio e sede. Ávido por água e vida. Fechei as portas da exterioridade. Entardeceu. Desejei que o dia se entregasse a noite para eu me esconder do medo. Queria o abrigo da escuridão da noite, seu esconderijo casual e seus mistérios. Sombra e a escuridão com lampejos de estrelas cadentes tornando tudo mais ameno; a terra, incontáveis estrelas, constelações e o espaço sideral imenso, que a despeito de tudo, seguem o itinerário.

Lembrei da família, dos amigos e da harmonia do universo. Tudo estava infinitamente claro, apesar da escuridão. Atestei minha ignorância e limitação. Reafirmei, no diálogo silencioso comigo mesmo que fiz o melhor que pude. Aquilo que deixei de fazer, não foi por falta de vontade, mas por não saber de outro jeito.

Eis que passou outra estrela cadente. Fiz rapidamente meu único pedido: que o dia terminasse bem, mas que se aquele fosse o último, que meus gestos fossem em favor dos meus companheiros de agonia. Reafirmei todos os meus princípios, revigorei minhas crenças. Estava pronto para o epílogo.

 Enfim, de tanto caminhar sem rumo por quilômetros noite adentro, chegamos ao vilarejo São José, na serra da Mandioca, distante 20km do início. Encontramos água, gente amedrontada e recolhida. Todos nos olhavam, mas não víamos ninguém. A vida foi se rejuvenescendo aos poucos. “Você não sabe o quanto caminhei pra chegar até aqui. Percorri milhas e milhas antes de dormir e não cochilei. Os mais belos montes escalei, nas noites escuras de frio, chorei, sonhei...” (Toni Garrido) Mais um dia de trabalho se vai.

Terminei o dia, com fome, sede, cansaço e esperança de dias melhores. Quando o resgate chegou, saímos do esconderijo incidental e nem percebemos que ali era uma pocilga desativada. Desfalecido, evoquei o canto dos guerreiros que voltam à casa: “Clareia manhã, o sol vai esconder a clara estrela ardente, pérola do céu refletindo seus olhos...” (Flávio Venturini)

Um provérbio popular afirma que dentro de nós há dois cães bravos em permanente luta: um de paz, outro de guerra. Vencerá aquele que eu alimentar mais...

 

Publicação de novembro de 2010, revisada em novembro de 2020



Comentários

  1. Muito bom, João. Mais que uma reflexão sobre um dia de cão, trata-se de uma desesperada declaração de amor à vida. Deus ouviu.
    Parabéns!
    Hayton

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    1. Grande cronista, obrigado pelo comentário. Ter sua presença aqui é uma honra. Seus comentários enriquecem e nos estimulam a melhorar, sempre!

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  2. "E a vida o que é?
    Diga lá, meu irmão
    Ela é a batida de um coração
    Ela é uma doce ilusão..."
    Bela narrativa, João, ainda que
    de uma situação trágica, no qual a frase de Gonzaguinha também poderia embalar esse momento amargo, juntando -se às outras citações poéticas/musicais tão bem mencionadas.
    Certamente cada um que foi partícipe desse momento tem uma forma peculiar de expressar como se sentiu e como se passou cada momento, mas a sua, em particular, foi de uma veia poética bela. "Desejei que o dia se entregasse à noite para eu me esconder do medo" é de uma extrema beleza, quando busca pra si forças internas e ao mesmo tempo, na condição de líder da equipe, freando qualquer fraqueza que pudesse ser exteriorizada diante do grupo.
    Que bom que o desfecho foi feliz e pudéssemos ter essa transcrição que para sempre estará viva em sua memória.

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    1. Prezado Fernando, obrigado! Sua presença assídua nos fortalece e nos estimula a novos desafios. Seus comentários poéticos são maravilhosos!

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  3. Parabéns Xará!
    Mais um relato verdadeiro, misturando conto, beleza e verdades, tudo recheado de belas citações.
    Um abraço

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  4. Amigo, João Neto! Escreves com "E" maiúsculo! Reafirmo! Tão apaixonadamente, cativante, que passamos a esperar nos encontrar novamente, e mais uma vez! Ficamos igual àqueles que toda a tardinha saem pra caminhar, e torce para reencontrar com o amigo Por do sol. E se não acontecer como havia planejado que tal "encontrar-se" com uma música velha, que julgávamos esquecido. E Deus, ora, Deus... Põe enigmático sorriso, no canto da boca. PARABÉNS!

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    1. Amigo Fábio, obrigado por tão poético comentário. Muito obrigado!

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  5. Excelentes história , em q a música sempre se faz presente nos fatos. Imagino quão tenso deve ter sido! Eu tive duas experiências dessa, mas, mais tranquilas, pois não teve sequestro, só fui o "contemplado" pra abrir o cofre nas duas oportunidades. É rapido mas parecia uma eternidade!

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  6. Realmente, um texto muito belo e de especial inspiração. Nestes tempos estranhos é bom aprender com alguém que sabe qual o cão bravo que se deve alimentar.
    Guardarei especialmente este excerto:

    "Desejei que o dia se entregasse a noite para eu me esconder do medo. "

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