A vida nossa de cada dia

 

                Aquele domingo parecia igual a tantos outros! Acordei cedo e apreensivo. Há vários dias que eu andava meio pensativo com umas coisas me azucrinando o juízo. Ainda bem que havia chegado o momento da prova "dos noves fora." Peguei o carro e segui a estrada rumo a Lagoa da Canoa. Íamos ao sítio Antonica, de Seu Luiz, amigo nosso e antigo servidor da linha férrea. De lá, iríamos desvendar algo que me atormentava o pensamento naqueles dias.

 No caminho, a estrada estava deserta. Algumas árvores se apresentavam e passavam rapidamente. Ao longe, um flamboyant vermelho, em plena florada, solenemente se exibia no planalto ! Lembrei da bela e melancólica canção "Sete desejos" de Alceu Valença (...) "lembro um flamboyant vermelho, no desmantelo da tarde...". Passamos por Lagoa da Canoa e nos dirigimos à zona rural pela estrada vicinal de piçarra, cuja poeira amarelada se misturava com o intenso brilho do sol vespertino, lembrando os desertos reais e imaginários.

  A poeira se avolumava a cada curva. A cada metro percorrido minha cabeça ia imaginando o que dizer quando chegasse ao meu destino. Recordei o porquê daquela viagem! Durante as comemorações da festa a Nossa Senhora da Conceição de Lagoa da Canoa, um amigo, sem ter nem pra quê, confidenciou-me que conhecia um rapaz deficiente mental que morava na sua região, Sítio Jenipapo, que vivia acorrentado.

-O quê? Perguntei surpreso! Como é possível que alguém ainda viva nessas condições!!

Ele asseverou: -É verdade! Posso levar você para ver!

Depois disso não tive mais sossego. Como é que pode uma coisa dessa, pensei comigo! Tenho que fazer alguma coisa para ver com os meus próprios olhos. E assim, passei dias tentando obter informações que me fizessem chegar à família. Mais uma curva, atravessamos mais uma vez os trilhos abandonados. O calor era intenso! Divagando nos meus pensamentos, lembrei que na minha infância viajei sobre aquela linha férrea no trem maria fumaça, com a minha mãe, de Palmeira dos Índios a Porto Real do Colégio para visitar minha vó em Propriá. É a única lembrança que tenho dela.

            Chegamos ao sítio onde moravam dona Maria e Seu José. Cheguei devagar, perguntando se havia um rapaz que tinha problemas de saúde e pedi autorização para vê-lo, simples assim. Seu José olhou para mim meio desconfiado, porém consentiu e me convidou para adentrar à casa. Dona Maria também se apresentou.

Da sala, chamou o Carlinhos para eu conhecer. Carlos tem 25 anos e, em decorrência de problemas mentais genéticos ou congênitos, não falava, não ouvia e não tinha convivência social, exceto a família. Puxa vida! Isso me deu uma tristeza, um aperto no peito, que não encontrei palavras adequadas para dizer. Uma ilha na imensidão deserta. A natureza fora-lhe impiedosa! Que fatalidade!

Carlos me cumprimentou pegando na minha mão. Eu estava diante de um homem puro, pois embora ele não tivesse consciência disso, presumo, não fora contaminado pela hipocrisia predominante na sociedade.  

Totalmente inquieto. Incessantemente, divagava de um lado para o outro, sem parar. Vivia sob efeitos de medicamentos. Nunca teve nenhuma ajuda psicossocial até aquele  momento. A sociedade deve-lhe muito. Sua mãe, afirmou que sente um amor infinito por ele. Preocupa-se, pois se morrer antes dele, quem o assistirá?

 Parodiando a parábola "O que rege os homens"  adaptada de um antigo conto encontrado em diferentes versões do Corão, no Talmude, nos livros apócrifos e em As mil e uma noites. Tolstoi (1828-1910), introduziu pela primeira vez na história junto com uma série de versos da primeira carta de João na Bíblia, inclusive o verso dezesseis do capítulo quatro: "Deus é amor, e aquele que reside no amor reside em Deus, e Deus reside nele." 

 Disse-lhe, por fim,  na minha insignificância, o que ainda estava gravado na memória de trecho da parábola sobre as necessidades terrenas tão mal interpretadas por nós: (...) “ ao homem não é permitido conhecer o que lhe será dado”.  (...) Não foi dado à mãe saber o que os filhos precisavam na vida. Nem foi dado ao homem rico saber o que ele mesmo precisava. Tampouco é dado a qualquer homem saber se, ao cair da noite, ele precisará de botas para o seu corpo ou chinelos para o seu cadáver." Portanto, cuidasse apenas de cada dia, nada mais, disse-lhe! Afinal, não havia chegado o momento. Acho que dona Maria não entendeu nada do que lhe falei, nem fiz questão de explicar mais nada.

Seu Pai, vendo minha intenção de proximidade, fez outras revelações. Afirmou que a casa era pequena e que não tinha muro de proteção. O Carlos, frequentemente inquieto e saindo a todo instante da casa, poderia se perder nas estradas ou mesmo ser atropelado.

Por essa razão, os pais acorrentaram-no ao tronco de uma mangueira para que ele não saísse sem permissão. Pela atitude extrema chegou a ser denunciado na delegacia de polícia por maus tratos ao jovem, tendo que responder inquérito policial.

 Agora, a situação estava sob controle, pois construíra um muro em redor da casa, facilitando sua livre circulação. Não me cabe fazer nenhum julgamento! Aprendi mais uma lição: Para se julgar uma pessoa e seus atos, sem erros, precisamos ter a mesma vida que ela e isso é impossível. O que fazemos com frequência são julgamentos parciais e tendenciosos. Nada mais.

Será que temos alguma razão para ficar reclamando das coisas? Imagine-se sem poder ouvir ou falar durante toda a vida? Não importa se tenha ou não consciência disso. A verdade é que temos uma dívida social para com o Carlos. É direito constitucional do cidadão condições dignas de vida, principalmente naquelas circunstâncias. Nunca alguém me disse tanto sobre a alegria de viver e o sofrimento, sem ter falado uma palavra sequer. Lembrei de mais um verso da canção "Sete desejos" (...) agora penso que a estrada da vida tem ida e volta. Ninguém foge do destino esse trem que nos transporta..." (Clique para ouvir)

Na saída, ainda meio pensativo, olhei ao derredor e vi uma árvore morta, cujo resto do tronco seco ainda permanecia fincado ao chão, lembrando que outrora fora uma árvore frondosa.  Cheguei mais perto! Imediatamente o vento, o sol e a sombra acalentados pelo entardecer, associaram-se à esperança e, num segundo, uniram-se ao tronco e seus galhos formando uma imagem de Cristo Crucificado anunciando a ressurreição. O céu me revelou mais um segredo... 

 

Publicação de abril de 2007 e revisada em novembro de 2020

Comentários

  1. Seu texto me fez lembrar um verso do poeta Bráulio Bessa: “Quando o amor pedir um pingo da sua atenção, por favor, chova!” Parabéns!

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  2. 👏👏👏👏👏 fiquei sem palavras. Me reportei ao tempo ao momento e a situação claramente.

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    1. Tem situações que as palavras fogem. Também aconteceu comigo. Obrigado. Abraço. Deus te proteja e guarde.

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  3. Mais um belo texto, João, para fazer-nos refletir sobre as desigualdades, sobre vermos que o pouco pode dizer-nos muito e, principalmente, sobre a complexidade do “ser humano”. A situação narrada fez-me lembrar um texto que li certa vez no site do instituto Claro, escrito por Ednelson Garcia, sobre uma prática que os habitantes das Ilhas Salomão fazem, quando querem destruir uma árvore, que é uma espécie de santidade para eles, face ao sustento que vem, principalmente, da plantação de palmito. Para abrirem espaço no meio da floresta, para a plantação de novos palmitais, é necessário que se derrubem velhas árvores, no entanto, árvores sadias. Cortá-las, seria uma maldade, a menos que elas morressem sozinhas, portanto, arrancá-las, seria necessário para que se evitem acidentes.
    O que os nativos das Ilhas Salomão fazem, é se reunirem durante trinta e três dias seguidos, pela manhã, no meio dia e pelo entardecer, em torno da árvore que se objetiva retirá-la, e três vezes ao dia, reunidos, gritam. Gritam xingamentos, desmerecimentos, agressões verbais. Seguidos os trinta e três dias, a árvore seca e morre. Morre “sozinha” e então é só arrancá-la.
    Quantos “Carlos”, não por serem considerados santidades, mas especificamente pelo contrário, não passam a vida tal qual as árvores das Ilhas Salomão quando estão para serem removidas, ouvindo gritos de uma sociedade através do desprezo, sendo ignorados, não tendo seus mínimos direitos preservados? Infelizmente, a humanidade é uma cria que não deu certo...ainda. Mas resta-nos a Esperança!

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    1. Reflexivo é o seu comentário. Obrigado por sua contribuição valiosa e enriquecedora.

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  4. Caro Amigo.Agora leio seus textos pensando: de quando será? Em que tempo cronologicamente falando ocorreu? E chego a conclusão que minha preocupação não tem o menor sentido. Pouco importa, ou pelo menos, pouco devia importar esse detalhe. Importa o que senti ao ler. Os sentimentos evocados. As impressões afloradas. Obrigado, amigo, por me proporcionar tudo isso. E me ajudar a crescer.

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    1. Eu que agradeço a oportunidade de compartilhar experiências. O caso é real, embora em tenha alterado os nomes dos protagonistas. Eu trabalhei no banco do Brasil de Lagoa da Lagoa entre 2005 e 2007. Se você olhar atentamente a foto é de 12/2006. Eu fotografei essa árvore morta no dia da visita. Foi bem interessante! Eu publiquei a primeira versão do texto em abril de 2007. O texto foi revisado com poucas alterações. A essência é a mesma. Espero ter atendido sua curiosidade. Não há problema algum em falar sobre o processo criativo dos meus textos.

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