Nervos de aço

 




        

        Muitos fatos inusitados e pitorescos acontecem nos ambientes de trabalho. No Banco do Brasil também era assim. Atenuar os problemas com criatividade, vendo fatos positivos no aperreio é a maneira de viver do sertanejo.  No quadro funcional de Poço das Trincheiras, dentre outros, faziam parte: Eu, Raimundo Aquino, Bartolomeu Oliveira, Tonho Cupim e Isabel. O gerente da agência era Arlindo Porto, paraibano. Homem culto, profundo conhecedor da música e da literatura brasileira. À época, tínhamos apenas uma extensão telefônica da linha da prefeitura, cujo telefonista era o servidor municipal Rocha, personagem sem maldades, mas atento às ligações telefônicas do banco. 
      
    Toda unidade bancária tem seu cofre para guarda de documentos, chaves e valores; moedas e dinheiro. O processo de abertura ocorre diariamente através de pessoas autorizadas para a tarefa. Têm diversos formatos e tamanhos para cada finalidade. São equipamentos de chapa de aço, com abertura através de fechaduras manual e eletrônica, além do tradicional registro de segredos. 

        Faz-se mister que se discorra sobre as habilidades da única mulher da turma naqueles anos: Isabel, única caixa-executivo. Dedicava parte de sua afeição e zelo pelo trabalho abrindo, cuidadosamente, um cofre que estava emperrando. O problema agravou-se quando a musa inspiradora se ausentou em gozo de férias.
    
       
     Fui designado para substituí-la na tarefa, com apoio do colega Bartolomeu Oliveira, mais experiente. Foi um deus nos acuda! No primeiro dia da missão  nada se confirmou como a gente queria. O cofre sentindo o peso das mãos, recusou-se a ser abertos pelos novatos. Rebelou-se  e tudo foi se complicando, mais e mais!  A cada tentame o desespero me assombrava. Eu resmungava: Não é possível um negócio desse! Como Isabel conseguia abrir um cofre defeituoso? Foram várias repetições frustradas! O improvável se confirmava a cada instante.

        Obstinado a acertar, reiniciamos os ensaios! Bartolomeu tentava de um jeito, eu de outro, e nada! Quando, de repente, veio-me a ideia de girar de um lado e pra outro e puxar com força o botão de comando. Quando fiz alguns movimentos e puxei, a peça giratória de controle de abertura do mecanismo saiu completamente. Aflitos, enrubescemos! Com o botão giratório  na mão,  paralisei! A vontade era de rir e chorar ao mesmo tempo. Quebramos o cofre!! E agora? Foi um alvoroço. Técnico para consertá-lo, o mais próximo estava em Salvador. Diante da iminência de abertura da agência, a situação era constrangedora! Contudo, não havia o que se fazer! Haja nervos de aço para tolerar os olhares e as pilhérias: estreante munheca de pau! 

        Dia seguinte, descobrimos um especialista em Palmeira dos Índios, que foi chamado para nos prestar assistência técnica. O único espaço que havia para o perito trabalhar era um pequeno orifício menor que o diâmetro de um lápis grafite. Com dois pedaços de arame o experto senhor conseguiu abrir o cofre dois dias depois. Porém, no dia do infortúnio não houve solução senão pedir auxílio a Santana, agência mais próxima, para nos socorrer com o enxoval básico  para a agência funcionar: máquina de caixa e o mais importante, numerário! 

        Nesse momento, entra em cena o supervisor Tonho Cupim, bancário poeta, aprendera a contornar obstáculos com humor e poesia.  Leitor constante de Vinícius de Moraes, Camões, Humberto de Campos, Drummond e dos cronistas Fernando Sabino, Mário Quintana, Fernando Veríssimo e o novato João Neto, quebrador de cofre. Epa, esse não! Entrou na lista de enxerido!! O fato é que Tonho Cupim buscou inspiração no meio da turbulência. Dias depois nos apareceu com a composição do soneto satírico, bem ao estilo do poeta barroco Gregório de Matos(1636-1696), o boca de brasa, em homenagem ao inabitual dia: vinte e três de outubro não sei de que ano da década de oitenta.
        Da minha parte só coube mesmo aderir à gozação e reconhecer seu dom literato.



Soneto para um cofre quebrado 



No vigésimo terceiro dia de outubro 
Um urubu pousou na minha sorte 
Isabel se ausentou pra chafurdar 
E João escangoletou o cofre-forte 


O ínclito Bartô bem foi partícipe 
Da insólita aventura do Joãozinho 
E ambos perpetraram grande feito 
Deixando em frenesi o Cupinzinho 


O solerte Arlindo, não gostando, 
Num esforço ingente e luta sobre-humana 
Aciona, asinha, Rocha, o pressuroso 


E em colóquio telefônico em Santana 
Requisita, exige e manda, em tom garboso 
Que venha baú, malote e muita grana. 



Publicação em maio de 2006 e revisada em setembro de 2020

Comentários

  1. Mais uma da inesgotável série de “histórias não contadas do BB”, onde um fato corriqueiro instigava poetas e cronistas a registrá-lo com graça e verve. Parabéns, João!

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  2. Fico a imaginar o grande susto que vocês tiveram com a situação criada. Ainda bem que os tempos eram outros; hoje em dia, a história se espalharia em questão de segundos e muitos malfeitores começariam a bolar planos para se aproveitar do cenário.

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    1. Fernando, obrigado pela leitura e ponderações.

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  3. Uns poucos gerentes de tesouraria que conheci tinham um jeitinho especial para abrir as portas dos cofres. Isso porque deixavam de fazer os consertos e manutenções das fechaduras quando necessários. Os pobres dos substitutos ficavam em apuros nas ausências dos titulares e entravam em pânico quando as chaves quebravam.

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    1. Oliveira, foi um sufoco ! Felizmente tudo terminou bem e com graça. Obrigado.

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  4. Boa noite Xará!
    Conhecendo os personagens e as rotinas, só me resta cair no riso.
    Parabéns

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    1. Valeu Xará. Obrigado pela leitura e comentário.

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