Serra do Poço e o Rio Ipanema fonte: Ariselmo Melo |
“Vamos
salvar as serras da beira do rio a Santana.
Serra do
Mar, serra da Remetedeira pra cantar eu sou madeira,
Cheguei da
Serra do Poço, é um colosso.
Serra dos Dois "Zirimão", Brejo, Brejão eu tô na serra da Capela.
O catuaba tá
doente da goela ficou de sentinela, se ele morrer vai pro céu.
Fiz um
chapéu feito da palha do milho, serra da Beira do Rio, serra de Montevidéu.”
Nesse canto de domínio popular , "coco das serras" atesta-se a beleza das serras no cantar dos costumes de sua gente. Santana é arrodeada de serras. Paisagem estonteante. Elevar-se é preciso. Conheci-as quase todas. Ora sozinho, ora acompanhado. Compus minha única música instrumental ao violão inebriado do mote “Canção as serras”. Na melodia não há palavras. Apenas emoções díspares de uma alma arrebatada se elevando ao cume das serras; Remetedeira, Pelado, Cruzeiro, Camonga e Poço.
Na canção, assim como na realidade, o espírito contempla o mistério de sentimentos opostos; alegria e tristeza. Que seria de um sem o outro? Os diversos aspectos se entrelaçam e se complementam, de modo que as coisas não devem ser compreendidas isoladamente. Tudo ter a ver com tudo. A interpenetração de contrários explicada dialeticamente pela filosofia é vivenciada simplesmente pela forma de viver do povo que ali habita sem necessidade de teorias complexas, apenas desfrutando momentos propícios que a natureza oferece.
De todas elas uma se destaca: Serra do Poço. Maciço grandioso e imponente. Avistado de todos os pontos da cidade. De um lado, Poço das Trincheiras; do outro, Santana do Ipanema. No inverno, ao alvorecer, um manto prateado de neblina toca-lhe o chão em reverência. As noites são iluminadas por luzes vigilantes. Faróis de proteção na cerração dos medos. Embevecimento ao olhar! Assistimos ao descortinar do dia quando os raios do sol aquecem a imensidão serrana. Quem ali vive não quer sair. Para quê? Tem tudo! Água em abundância, terras férteis, árvores frutíferas, flores, muitas flores e paz.
Serra do Poço e o Rio Ipanema Fonte: Ariselmo Melo |
No verão, a brisa suave toca-nos o rosto chamando para o tempo de viver. Ao fim da tarde, contemplar o horizonte, em qualquer direção, emudece-nos! Resta-nos festejar e agradecer. O crepúsculo nos convida a viver instantes de gratidão vendo o dia se entregar à noite lentamente. Aguardar o momento de ver todas as luzes da cidade se acenderem de uma só vez. E a lua quando desponta no horizonte? Sorrateira, divinamente nua, amansa a noite e os homens dos corações endurecidos.
Tive o privilégio de trabalhar no Banco do Brasil de Poço das Trincheiras na companhia de tantas pessoas especiais. Do lado de lá, o panorama da Serra do Poço tem outra nuance: imponência, ousadia e proximidade. Do lado de cá, nostalgia, contemplação e mistério. A vantagem de estar no alto do morro é que a vida, assim como a natureza, poder ser vista de muitos ângulos. Inúmeras perspectivas. O Rio Ipanema adorna à paisagem, emprestando-lhe curvas sinuosas que embalam as corredeiras, alardeando sonoridade ao se deparar com os obstáculos e estreitos pedregulhos, contornando-os.
Naquele tempo de comunicação dificultosa, precisando nos comunicar com Seu Pedro para resolver problema bancário, mandamos-lhe recado por vizinhos próximos para comparecer ao banco. Algum tempo depois, chegou um cidadão franzino, de andar manso. Suas mãos calejadas anunciavam quão árduo é o trabalho da roça. Seu rosto sereno traduzia o contentamento e realização de vida simples e plena. Por acaso, conversei com ele naquele dia.
Perguntei-lhe onde morava.
- Ele me respondeu que era na Serra do Poço.
Interroguei-o, no intuito de conhecer mais sobre a serra, dizendo-lhe que morava em Santana do Ipanema e se ele costumava visitar o lugar.
Ele me respondeu calmamente:
- Meu filho, ouvi falar de Santana, mas lá nunca fui. Moro há trinta e cinco anos na Serra do Poço. Estou bem na serra fazendo aquilo que sei fazer melhor com o dom que Deus me deu: trabalhar na roça e viver do fruto do meu trabalho.
Fiquei abismado, sem entender como aquele cidadão há trinta e cinco anos morando na Serra do Poço nunca havia ido a Santana. Essa conversa ficou guardada na prateleira dos mistérios. Anos mais tarde, comecei a entender as razões dos seus argumentos. A plenitude e contentamento de se viver intensamente a vida com os dons que Deus o havia presenteado. A venda dos meus olhos foi se descerrando aos poucos, mas ainda permanece. Afinal, tem coisas que se precisa de tempo para entender. Nunca mais soube notícias de Seu Pedro.
Publicação de agosto de 2011, revisada em setembro de 2020.
Não tem como a gente ler este texto sem lembrar de Simone a dizer: “eu quero ter a solidão das cordilheiras desabando sobre as flores inocentes e rasteiras...” Bela sacada, João!
ResponderExcluirMaravilha ! Obrigado!
ExcluirA crônica começa com um canto e continua com uma poesia em toda sua narrativa, sob seu olhar contemplativo, dando valor às imagens e sentimentos que, certamente, passam despercebidos em tantos que mesmo vivendo por lá não vêem por esse prisma poético. Belo olhar serrano!
ResponderExcluirObrigado Fernando. Você que morou em Santana , em algum momento se deparou com a imponência da serra do Poço.
ExcluirMaravilhoso texto, certamente para quem vivenciou, espetacular! Parabéns João!
ResponderExcluirObrigado pela leitura.
ExcluirAs serras nos encantam com suas belezas singulares. A do Poço, imponente, deixou seu Pedro, por vários anos, próximo do paraíso. O que mais ele poderia desejar?
ResponderExcluirVerdade Oliveira. Obrigado.
ExcluirJoão, parabéns pelo debulhar de palavras poéticas sobre esse pedaço, a tantos despercebido, de paraíso santanense!
ResponderExcluirFaz-nos querer também ir lá pra serra e desvendar esse mistério de amor.
Obrigado Joselito pela leitura e comentário poético.
ExcluirBom dia Xará!
ResponderExcluirBelo registro...Parabéns.
Eu, que tive parte da minha infância entre a cidade e a zona rural, sempre fui admirador dessas formações encantadoras... Que tenho um bisavô sepultado à base de uma Serra ou Serrote (Alexandre Fernandes-Serrote da Pintada)...E as mangas, da Serra do Poço...Como posso esquecer, transportadas em caçuás, nos lombos de jumentos...
Viajei...
Abraço