Eu estava ansioso, afinal aquele seria o meu último dia de trabalho em Lagoa da Canoa, terra do notável músico multi-instrumentista Hermeto Pascoal, após dois anos e meio de trabalho. À noite, haveria uma despedida previamente organizada por mim mesmo.
A Lira Traipuense do maestro Basílio, na verdade, seria atração principal, com sessenta músicos iria se apresentar especialmente para mim. Eu havia feito um pedido há tempo para ouvir a canção “El Presidente” (Clique e ouça )uma bonita canção instrumental dos anos 60, composta especialmente para trompete. Conheci essa música ouvindo João Serapião, virtuoso músico de Poço das Trincheiras, tocando no piano na AABB Santana do Ipanema e imediatamente fiquei fascinado pela beleza da melodia.
No transcorrer do dia eu havia desejado que fosse uma despedida simples e com muita música para brindar tão especial momento. Dentre os pedidos, imaginei que seria importante que em cada mesa tivesse uma vela acesa para nos lembrar do desafio constante de manter a chama de tantas coisas; amizade, respeito, comprometimento e ética. Estava tudo certo: Haveria convidados, banda para tocar e, logo após, jantar para os presentes.
Eu conhecera o Maestro Basílio por insistência mesmo, visto que ele residia em Traipu, cidade próxima a Lagoa da Canoa. Suas habilidades musicais eram enaltecidas por todos. E eu, insistente aprendiz, permanentemente atento à música, ao ser transferido para trabalhar em Lagoa da Canoa, intermediamos junto ao município a fundação de uma escola de música, cujo professor seria o maestro. Essa escola além de honrar o prestígio local, tendo como inspiração maior, Hermeto Pascoal, o bruxo dos sons, seria uma forma de continuar a saga musical da localidade, descobrindo talentos, proporcionando inclusão social.
Ainda encontrei o maestro em várias ocasiões, após a fundação da escola e depois, como líder da escola Canoense, educando tantos jovens. Num desses encontros pedi ao músico que escrevesse para mim a partitura da canção “El Presidente”, cuja peça ele também admirava e executava e eu, desejava aprender. Ele tinha uma destreza incrível para solfejar e escrever partituras. Num piscar de olhos, rabiscou e me entregou a música. Guardo essa partitura como relíquia. Fez-me vários convites para comparecer à festa da padroeira da cidade, onde a banda se apresentava. Infelizmente não foi possível. Continuei sem ouvir a canção desejada.
Quando me desloquei para o local do evento, viajando de Arapiraca a Lagoa da Canoa, percebi que havia algo estranho; a cidade estava às escuras. Não imaginei tal imprevisto, mas era verdade: Estava faltando energia! Fiquei preocupado, pois poderia prejudicar a cerimônia organizada com tanto esmero. Dito e feito: a energia não retornou! A frustração se apossou de mim. Porém, eu não tinha o quê fazer além de esperar...
Algum tempo depois recebemos telefonema do maestro dizendo impossibilitado de comparecer à celebração porque não havia como os músicos lerem as partituras às escuras. Outra decepção! Restaram velas nas mesas como eu havia premeditado. Prosseguimos a cerimônia assim mesmo, sem música e sem energia elétrica, à luz de velas! Aliás, eu havia levado meu violão. Em vez de ouvir, toquei e cantei para alguns poucos convidados que compareceram. Acontece!
Essa ocasião ficou marcada pelos imprevistos, mas estiveram lá pessoas importantes na minha caminhada. O tempo não para e a vida prossegue a despeito de tudo. E o maestro Basílio? Depois desse dia não o vi mais. Tomamos rumos diferentes.
Tomei conhecimento que faleceu em abril de 2010, repentinamente, em decorrência de complicações cardíacas. Como eu lamentei sua morte! Firmei compromisso comigo mesmo de que faria uma visita à família enlutada. No momento adequado, viajamos a Traipu, às margens do rio São Francisco, para visitar à família do maestro.
"Região de concentração indígena, a palavra Traipu é de origem tupi, como mostra o especialista Teodoro Sampaio em seu abalizado dicionário. É uma corruptela de “ytira ypu”, que quer dizer “fonte de morro” ou “olho d'água do monte”. Em seus primórdios, durante o século XVII, era um morgado estabelecido na região pelo mestre de campo e grande proprietário de terras Pedro Gomes. Este deixou para seus descendentes seus bens vinculados, inclusive o nascente povoado que recebera o nome de Porto da Folha. Em 1870, mudou a denominação para Traipu, empregada pelos índios da região." (widipédia a enciclopédia livre).
Curiosamente, em 1877, Santana do Ipanema pertencia à jurisdição de Traipu. Seus apelidos: "Terra entre morros", "Cidade dos Músicos" e "Cidade Maravilhosa".
Andando nas vielas passamos defronte à Matriz de Nossa Senhora do Ó, padroeira da cidade. Diante da imponente igreja há um largo onde ocorrem apresentações musicais e folclóricas no período anual das festividades. Imaginei a filarmônica "Lira Traipuense" sob a regência do Maestro Basílio encantando o público com as suas virtuosas exibições, com o auxílio do cenário majestoso do Rio São Francisco ao fundo.
A casa do maestro exalava música pelos quatro cantos. Era assim que eu o imaginava. Pude perceber que ele gostava de música mais que eu! Com o maestro tive poucos contatos, as palavras foram escassas, mas criamos laços. Pude constatar sua simplicidade, paixão e fidelidade à música que tanto amava. Enquanto rabiscava essa crônica, invoquei pensamentos e sentimentos para compor minha primeira peça ao piano e lhe dedicar: música ao longe.
Publicação de abril de 2011, revisada em julho de 2020
A música é uma das artes mais sublimes da criação humana, que consegue nos transportar através do imaginário, faz-nos voltar ao passado, vivenciar o presente e idealizar um futuro. Imaginarmos qualquer situação com um fundo musical sempre a torna mais bela.
ResponderExcluirQue bom que existem seres privilegiados que têm o dom inato de traduzir os silêncios em obras magníficas para enriquecer a trilha de nossas vidas.
Fernando, fico feliz que as minhas crônicas despertem depoimentos tão maravilhosos. Obrigado.
ExcluirNem sempre o que planejamos dá certo. Diante do inesperado, é preciso tranformar um limão numa saborosa limonada. O autor, sem maestro, sem músicos, sem energia elétrica, mas com um violão e boas melodias conseguiu adoçar a alma dos convidados.
ResponderExcluirOliveira, obrigado. Foi uma noite totalmente improvisada para tanto planejamento. É a vida !! Como diz o poeta: "só nesta viver..."
ExcluirNem sempre o que planejamos dá certo. Diante do inesperado, é preciso tranformar um limão numa saborosa limonada. O autor, sem maestro, sem músicos, sem energia elétrica, mas com um violão e boas melodias conseguiu adoçar a alma dos convidados.
ResponderExcluirJoão, até eu fiquei triste com o desfecho. Comecei a imaginar uma surpresa maior q tinham preparado pra vc, q seria muito merecida, por sinal, dado ao seu engajamemto e comprometimento com a comunidade em que está convivendo, mas, como homem inteligente, criativo, amante da musica, da simplicidade e compreensivo com o ocorrido, deu a volta por cima e prosseguiu com as justas homenagens ladeado das pessoas do seu querer.
ResponderExcluirJúnior, da vida pouco sabemos. Às vezes planejamos tanto as coisas e tudo acontecendo de forma diferente. É a vida! Precisamos estar prontos para contornar os obstáculos que se apresentam da melhor forma possível e tirar lições para o nosso engradecimento. Obrigado pelo comentário.
ExcluirBela crônica. Parabéns.
ResponderExcluirSou de Lagoa da Canoa, onde se passou o sinistro. Também tive a honra de conhecer o Mastro Antonio Basílio. Por várias vezes, o vi no comando da orquestra, na festa da padroeira, e nos carnavais de Traipu.
Sem esquecer que a música "El Presidente" é bela.
Obrigado Antônio pela leitura e comentário.
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