No meu pequeno jardim o canto solene de um bem-te-vi anuncia o alvorecer. Contendo os meus gestos para não o afugentar, busco sua presença no florido e perfumado pé de jasmim para vê-lo chilrar entre as folhagens. Alçando voos rápidos ouço seu cantar disperso pelo ambiente. Sagaz, pousa no fio energizado da rua, emitindo gorjeios, ao mesmo tempo em que agita as asas, exibindo garbosamente suas habilidades pássaras.
No amiudar do dia investigo as plantas com assaz argúcia para lhes conferir o vigor. Diálogos silenciosos com as plantas se traduz em paz interior, além de treinar a paciência. Entender os mistérios da terra e das plantas é tarefa diletante.
Taciturno, no caos do pensamento, consciente da minha senescência, busco no labirinto das memórias as raízes do meu apego à jardinagem. Nas lembranças, há muitos fragmentos soltos. À medida que o tempo vai passando e de tanto recorrer às parcas memórias, juntamos partes que nos revelam um pouco de quem somos.
Contudo, não é fácil, *“lapsos de memória com hiatos não permitem que as ideias sejam completas. Recordações da infância nem sempre surgem de maneiras integrais visto que a inocência nos impede de enxergar as árduas camadas da vida. Desavisados do seu valor, normalmente vivemos essa fase da vida em um breu, cercados por um universo infantil onde as dores e as lutas vividas por adultos são aventuras alegóricas, fantasias inusitadas”. *(Rafaela Gomes, crítica de cinema)
Muitas vezes, algumas recordações são recorrentes. De tempos em tempos nos inquieta, assombra-nos, recusando o esquecimento. Teimando em aparecer, revelam-se e nem sabemos o porquê. Independentes, com autonomia e significado afloram por si mesmas a despeito do querer. É impossível se desvencilhar.
Recordo nossa casa à Avenida Nossa Senhora de Lourdes, em Santana, nos anos 1960-1970. Embora o espaço fosse reduzido havia um pequeno jardim. Minha mãe, uma guerreira cabocla, afora o trabalho de serviçal no Grupo Escolar Padre Francisco Correia e tantos trabalhos domésticos, ainda encontrava tempo para cuidar do jardim. E me levava junto. No jardim, recordo; tinha roseiras, crótons, jasmins, lírios, dálias, hibiscos, papoulas e maria sem vergonha.
Atualmente, quando as identifico, diálogos se intensificam na simbiótica interação, como se fosse um reencontro de velhos conhecidos. Imediatamente se faz uma dobra no tempo e o viajante ermo retroage décadas em segundos. Reminiscências do jardim também favorece a sobrevivência das espécies que lá existiam.
Uma visão holográfica se descortina e projeta o cenário do jardim diante de mim. Com minha memória associativa vejo minha mãe cuidando dos exemplares. Assisto ao meu próprio filme. Vejo-me ali, embora não soubesse, ou não tivesse consciência da importância daquele momento espontâneo. Tudo ficou guardado nos recônditos dos arquivos existenciais para mostrar que aprendemos muito mais pelo exemplo do que pelas palavras. Devemos dar aos filhos mais experiências do que coisas.
“Uma parte importante da aprendizagem no jardim é a tentativa e o erro. A jardinagem é um meio simples e indolor de aprender algumas lições para a vida, como compreender que, quando uma planta morre, ficam nutrientes no solo”, explica Renata Brow, autora de livro sobre jardinagem para ao público infantil.
“Jardinagem ensina a crianças a ter paciência”, disse Jenny Hendy, uma especialista no assunto que escreveu mais de vinte livros. E continua “...isso ensina a meninos e meninas a nutrir as coisas, a entender que é errado matar insetos indiscriminadamente, apenas porque não os entendemos ou porque temos medo deles. Na direção certa, crianças vão desenvolver uma noção melhor da natureza e do nosso meio ambiente.”
Várias amendoeiras castanholas enfeitavam a Av. Martins Vieira. Em toda a cidade era a árvore mais comum nas ruas. Excelente sombra para os automóveis. Árvore favorita para servir de esconderijo nas brincadeiras de esconde, esconde. Na época da colheita os frutos eram saborosos. Tinham uns insetos cabulosos e malcheirosos, mas tudo bem! Tolerava-se. Defronte à casa de Seu Domício Silva tinha uma enorme. Que fim levaram todas elas? Cadê as amendoeiras das ruas? Por que as destruíram?
Cultivar plantas também me rendeu aprendizados e situações inusitadas. Certo dia, estava num almoço, como convidado, na zona rural de Santana. O sítio dos anfitriões era muito florido. Então, interessado em variedades diferentes fiz um pedido de uma muda de planta. Enquanto a dona da casa gentilmente me atendia, seu marido, pensativo, nos acompanhava meio cabreiro, querendo falar, mas se reprimindo. Ao final da entrega das mudas, na sua simplicidade, verbalizou o que já estava engasgado: - Vote! Um home prantando flô... Olhamo-nos, surpresos e caímos na gargalhada...
Do alto da goiabeira do quintal de casa, entre flores e frutos, eu via estradas e horizontes. No meio dos galhos tinha um lugar pra recostar e sonhar. Na primavera dezenas de ipês roxos floridos, apensos ao pé da serra, estendiam suas flores ao deslumbramento de olhares que vagavam distraídos no assombro do arrebol da tarde.
Fevereiro, 2019
Praticar jardinagem ou "mexer" com terra, é um aprendizado pra vida toda, nos tras uma vastidão de ensinamentos, como paciência, amor e respeito a natureza entre outros, além de nos dar muito prazer. É apreciar o simples, gratuito, porque a natuteza nos dá a medida que damos a ela. Mas, acima de tudo, é um encontro espiritual, uma troca, tem cores, tem cheiros, tem beleza visual e isso nos faz viajar! Parabéns, João, buscando na simplicidade do cantar de um bem-te-vi e no surgimento de uma flor, toda essa viagem pela natureza!
ResponderExcluirGrande Júnior, leitor assíduo, obrigado. Além de conterrâneo, divide comigo a paixão pelo torrão e a lembrança sempre presente ao longo da estrada.
ExcluirSó o seu caso de amor com a craibeira já daria uma crônica sensacional. Parabéns, João, por mais esta oração em louvor das plantas e das flores.
ResponderExcluirObrigado Hayton. Sua opinião enriquece a crônica. A propósito, o tronco cortado da craibeira foi dividido em pequenos pedaços e andou comigo mais dez anos até que tive descartar porque estava infestado de uma traça que havia corroído o miolo.
ExcluirCrônica sob formato de uma sinfonia da natureza. Começa na leveza de um bem-te-vi e fecha-se no alto de uma goiabeira; e entre uma ponta e outra há a beleza na contemplação da natureza, em perfeita sintonia. Bela.
ResponderExcluirFernando, obrigado pela frequência nas leituras. Seus comentários são incentivadores para novos trabalhos.
ExcluirMaravilhoso texto, meu amigo João. Passeei por suas memórias, relatos todos... Parabens. Parabéns sempre!
ResponderExcluirEita, Goretti, obrigado pela frequente leitura e generosidade nas palavras.
ExcluirA harmoniosa convivência do autor com a natureza é
ResponderExcluirum convite para remexermos no baú de nossas lembranças. Quando criança, o jardim da minha casa tinha um cantinho especial, reservado para as plantas medicinais. Nele havia hortelã miúda e graúda, alecrim, babosa, alfavaca-cravo... Cuidar dessas plantinhas era um dos meus passatempos preferidos.
Grato Oliveira pelas considerações. A gente sempre tem uma boa história pra contar das experiências com a natureza seja de forma contemplativa ou na jardinagem prática como criança ou adulto. Obrigado.
ExcluirMais uma bela obra!
ResponderExcluirE eu que, por tantas vezes, dê forma impiedosa, ajudei meu pai s cortar uma traineira, prá transformá-la em peças de carro de bois...
Parabéns.
Firme o compromisso de plantar tantas quantas árvores você ajudou a cortar. Eis a solução. É facil ! Obrigado pelo comentário.
ExcluirSeu amor pela natureza é inspirador! Nos faz refletir sobre o que realmente é a beleza da vida. Parabéns João.
ResponderExcluirObrigado Mariana. Eu já perdi a conta de quantas árvores plantei. Continuo plantando. As floradas das craibeiras e dos ipês são espetáculos imperdíveis em qualquer lugar.
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