À
Memória de Antônio Alves Costa (Costinha)
Há uma paisagem na
janela. Na janela há uma alma. Na alma há um coração. Não um coração que bate,
só um coração que sente. No jardim do coração, folhas de outono deslizam,
flutuam levadas pelo vento e se deitam suavemente sobre a estrada compondo à moldura do
caminho.
Na velocidade da luz,
cenas são transpostas uma atrás da outra de trás para frente. Numa fração de
segundos vou tomando outra vida com lampejos de vigor e mais jovem e mais
vigor. Vejo-me rejuvenescendo, acelerando e viajando
No cenário etéreo a rua
vai se formando, casas vão se construindo e gente, muita gente vai chegando e a
essência de vida toma forma humana. Ouço muitas vozes e o alarido do povo.
Agora tudo é real! Somente os meninos não chegaram porque sempre estiveram.
Meninos mergulham no tempo, desaparecem e reaparecem no encanto do instante preciso. Tem o segredo
da magia de se transformar, com passe livre ao passado, presente e ao que ainda
vai chegar.
Naquelas calçadas das
ruas meninos e meninas desenham com cacos de telhas e pedaços de tijolos de construção,
aviões imaginários de brincar de pular, em movimentos salteados e alternados, indo e
voltando.
De repente, chuva! Chuva
que corre pela calçada e apaga parte dos aviões riscados. Ficam traços. Meninos
estão a conspirar a corrida de carrinho de rolimã na calçada quando a chuva
passar, desde a esquina da casa de Seu Lindomar até a esquina da casa de Seu
Jaime Costa. Antes, porém é preciso saber se Seu Costinha não vai passar por
ali. Ele é bravo! Toma-nos os carrinhos de rolimãs e os patinetes. Ele é
implacável! Seu Costinha assombrava-nos, moleques travessos. Era temido e
destemido. Não o queríamos por perto. Ele nos apavorava e nos roubava da
inocência para o dever da correção.
A conspiração dera
certo. Na esquina de Seu Jaime Costa, Tonho era o vigia e Zezinho vigiava a
esquina de Seu Linduarte. E eu a pilotar o carrinho de rolimã. Desci a ladeira
soberano e temeroso, rasgando as calçadas de cimento sem dó, nem piedade, num
barulho ensurdecedor que pareciam as trombetas dos vassalos, anunciando a
chegada do rei, apagando os últimos e singelos riscos dos aviões das meninas.
De súbito, o aviso: Seu
Costinha estava vindo, trazendo consigo a ira dos guardiões da ordem. Desfez-se
a tarde, desfizeram-se os meninos. Gritamos; corre, corre... Seu Costinha,
clamou: vão soltar pipas! Retrucamos ao léu: - Não queremos soltar
piiiiiiipas... Temos medo, porque trazem doenças que descem pela linha untada
de cerol pela malvadeza de cortar as linhas das pipas
dos adversários, contaminando seu voraz dono, punindo-o por mandá-las de volta
ao horizonte, deixando entristecidos tantos outros meninos.
Instantaneamente, na janela
do horizonte o menino mergulhou na alma sem se dar conta e nas profundezas dos
esconderijos secretos sofreu o encantamento de despertar homem, sabendo-se de
repente, nada restando senão cumprir regulamentos.
Seu Costinha, que fora símbolo
de pavor e medo, agora como por magia, virou menino e não mais os persegue.
Agora é cúmplice. Parece anjo que de nada mais lembra a não ser do canto
derradeiro dos guerreiros vencedores. O lenitivo agora é juntar-se aos meninos
que ainda restam. Não há mais carrinhos de rolimã. Não há mais desenhos de
aviões nas calçadas, nem giz, nem caco de telha, nem pedaço de tijolo de
construção, nem meninice.
Fragmentos de instantes de descontração e prazer são guardados em formas de flash em regiões abissais das memórias que vão nos revelar no futuro distante que os momentos vividos eram de fato hábil artifício da felicidade. A felicidade tem seus ardis. Esconde o que verdadeiramente é, porque o homem despreza o que tem. A gente cresce e envelhece. Meninos são seres encantados que têm o poder de voltar no tempo, basta que se disponha, seja hábil e renuncie a artimanha humana.
Tornamo-nos
confidentes! Será arte? Fico receoso de que vai lembrar a qualquer instante das
transgressões e aplicar sentenças, todavia nada acontece. Não se fala mais no
assunto. Romperam-se os grilhões quando cantamos a última canção libertária.
A única diferença entre
homens e meninos é o preço dos brinquedos, diz um ditado.
Publicação de abril de 2010 e revisado em Julho de 2020
João, acabo de ler uma de suas mais belas crônicas... Sem dúvida alguma, o manejo.com as palavras, a profundidade das memórias da alma, exposta com tanta simplicidade, encheu meu coração dessa belíssima poesia, frase a frase. Parabéns, meu amigo! Parabéns! Parabens, nobre escritor!!!
ResponderExcluirObrigado Goretti pela frequência nas leituras e comentários generosos.
ExcluirQue texto magnífico, João. Desde que o recebi já li duas vezes. A primeira leitura numa tirada só e a segunda pausadamente, demorando-me a cada parágrafo, para encantar-me com a beleza da transcrição. Há uma sensação de forma perfeita na narrativa, sem excesso ou falta.
ResponderExcluirÉ uma riqueza poética a cada frase, tal como "Ele nos apavorava e nos roubava da inocência para o dever da correção".
Seu Costinha jamais imaginaria que viria a dar margem a tão bela narrativa e certamente ficaria com os olhos marejados ao ver o texto.
Obrigado Fernando pela assiduidade e comentários elogiosos.
ExcluirMaravilha de crônica, João! Me vi correndo pela Rua Antonio Tavares e adjacências em brincadeiras permitidas e proibidas, já que menino não tem discernimento do que é certo ou errado! A vida é uma diversão só! E lembrei-me, tb, de Seu Costinha, uma figura única na história de Santana!
ResponderExcluirJúnior ,obrigado ! Seu Costinha era uma figura!
ExcluirMuito bom e prá nos que conhecemos os Personagens... Bela crônica. Parabéns
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