Ruas de Outono ( O lado sombrio da liberdade )


                                        
            De vez em quando eu fazia aquele percurso. Ainda que eu ande pelos meus caminhos, nada do que foi um dia será novamente do mesmo jeito, mesmo que aparentemente as circunstâncias pareçam iguais. Às vezes a gente tem a ilusão de que as situações possam se repetir. Buscamos a repetição daquilo que nos agrada. É normal. Poderemos até conseguir situação melhor, indiferente ou pior, não iguais. Precisamos aprender, cada vez mais, a lidar com as frustrações. O legado da vitória é a certeza de que a cada superação saímos fortalecidos. E o mais importante: a humildade de aceitar aquilo que não podemos mudar. “Nada vai permanecer no estado em que está”. Naquele dia algo especial estava para acontecer.

Manacá de cheiro
            Era uma manhã de abril, em pleno outono! Aliás, estação que só conhecemos dos padrões climáticos que variam de acordo com a região. No sertão alagoano, só temos dois períodos: verão, a maior parte do ano e um pouco de inverno. Caminhando pela rua algo incomum me chamou à atenção: um arbusto plantado ao lado de uma casa, sem muro, à disposição dos olhares, exibia intensa florada, de várias cores, delicadamente perfumadas. Eu a desconhecia. Era muito bonita. Não só eu que parei para apreciar àquela maravilha da natureza, mas todos que passavam. 

            Entusiasmado, no dia seguinte voltei ao local. Como tinha uma senhora defronte à porta da casa me dirigi à residência e indaguei: 

- Senhora, como é o nome dessa planta? 
- Ela me respondeu: É manacá de cheiro! 
- Respondi que não conhecia e continuei indagando: 
- A senhora me dá uma muda? Ela respondeu: 
- Dou, mais o bom mesmo é roubar! Seu menino, planta roubada pega que é uma beleza! O senhor poderia já ter tirado um galho aí. Não tinha problema não! 

            Sabedoria popular não se discute, mas não roubei não! Fui presenteado com um galho que plantei em casa. Desde então, sou cultivador desse arbusto singular. Ainda continuo pelejando para obter uma florada semelhante àquela, mas ainda sem sucesso. Trata-se do manacá de cheiro (Brunfelsia uniflora, Solanaceae). Nessa, e em muitas outras espécies, é bom esclarecer, as plantas não produzem flores de cores diferentes. São as flores que mudam de cor no decorrer dos dias de vida à proporção que vão envelhecendo. 

            Pesquisando sobre o tema percebi que, em outro tempo, o manacá de cheiro era presença certa nos quintais das casas das vovós do início do século vinte. Hoje não é tão fácil encontrar essa espécie nativa da mata atlântica em quintais, porque boa parte desses lotes cheios de pomares e flores deu lugar a apartamentos. As flores são a grande atração; arredondadas de cor azul-violeta, com o decorrer dos dias declina à tonalidade rosa e, em seguida, tornam-se esbranquiçadas. A cor das flores muda à medida que envelhece. As flores juntas de várias tonalidades oferecem um espetáculo visual esplendoroso de encher os olhos, sem falar na fragrância inebriante. A versatilidade da planta também lhe rendeu o apelido de ontem-hoje-amanhã. 

            A cor faz toda a diferença na beleza das flores. E não são apenas os amantes da natureza que notam: abelhas, borboletas e pássaros, se aproximam delas para beber seu néctar, são atraídos, do mesmo modo, pelo colorido vistoso. 

            Vez por outra, passava por aquela rua na intenção de conferir como estava a planta pela sua simplicidade, beleza e perfume. O tempo é implacável, passou rápido e eu nem percebi. 

            Após dois anos, voltei à rua. Não encontrei mais o arbusto. Pensei comigo: devo ter errado o endereço, pois não localizei a arvoreta. Como estava apressado, relevei o imprevisto com a promessa de averiguar melhor noutro momento. 

            Mais um dia e nada. Pensei comigo: estou ficando velho e esquecido das coisas! Onde era a rua do pé de manacá de cheiro? Não é possível que eu tenha errado novamente o endereço. Fiquei inquieto com a situação. Como não encontrei? 

            Então, decidi conversar com algum morador próximo. Nesse ínterim, lembrei-me de que uma conhecida morava naquela mesma rua e que, inclusive, também cultivava plantas como eu. Então me dirigi a sua casa e contei o caso. Enquanto relatava o fato, percebi que ela fazia um ar de riso, discretamente. Após o meu relato, rendeu-se ao riso com a empáfia de quem não guardava segredos alheios. Pra o meu desalento, veio a severa elucidação do mistério. 

            Segundo sua afirmação o manacá ficava em área aberta, ao lado de residência de um casal que há muito não se entendia. As brigas frequentes culminaram com a separação. Na divisão dos bens, um deles ficou com o terreno onde estava plantado o manacá. Os imóveis eram vizinhos. A primeira providência foi construir um muro para separar os terrenos para evitar contato e novas contendas. Assim, o arbusto foi aprisionado, invisível aos olhos de quem passava pela rua. 

            Após a construção do muro, o lado de cá da rua, no passeio público onde se via o manacá, agora só se podia ver a sombra em preto do muro sobre a calçada. Sombra indiferente se comparada àquela florada. Ainda bem que testemunhei seu esplendor! Pude vivenciar o instante ímpar daquela beleza.

            Andando pelas ruas de outono, restou apenas a saudade na busca inquieta e singular do olhar indeciso para o muro de pedra à procura do arbusto. Descuidado, ao passar pela rua, ainda vejo as flores, as cores e um leve perfume vagando no ar que honram à memória da flor. 

        Nada mais havia a fazer senão guardar os momentos de fascinação da florada do manacá de cheiro que solitariamente se exibe ao seu senhor, presumo, cumprindo seu destino de encantar pela sua beleza perfumada, “pelo tempo que durar”. (Marisa Monte/Adriana Calcanhoto) Clique aqui para ouvir. Caminhando pelas ruas de outono hei de encontrar outras surpresas. Quiçá não demore muito. Que assim seja! 

Publicação de abril de 2017, revisado em junho de 2020. 


            

Comentários

  1. Parabéns pelo texto! Deu pena dos cegos que nunca saberão do que você fala quando se refere às cores do pé de manacá de cheiro. Mas lembrei que eles devem ter pena de nós ao sentirem o cheiro das flores com um olfato singular. Deus é perfeito até quando nos faz desiguais.

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  2. Lembre-me do conto "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry. A mensagem do cuidado que deveremos ter com a nossa rosa põe em cheque o que realmente é belo e fundamental em nossa vida. Estender o olhar sobre as flores para apreciá-las e as entender, é uma forma de compreender um pouco o nosso próprio caminhar.

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    1. Joselito, obrigado pela leitura e comentário. Vamos cuidar daquilo que é essencial em nossas vidas.

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  3. Belo manacá de cheiro, que se fez e desfez, com tamanha sensatez, que um simples caminhar, na busca pelo que foi
    e deveria tornasse novamente em sê-lo, em não podendo, guardou-se na memória para sempre como sendo e que, implicitamente dito, "solitariamente se exibe ao seu senhor que mentalmente o fotografou e o encantará para sempre pela sua beleza perfumada" e agora a mais tantos outros, pelas palavras de mais um belo texto. Bravo, João.

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    1. Fernando, obrigado. Leitor assíduo que enriquece a crônica com comentários poéticos.

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  4. Ótimo texto. Lembro o jardim existente na casa da minha avó. Era um espaço pequeno,
    no entanto, sempre cabia, aqui e ali, um galhinho de planta roubado da vizinhança. Nele, a mais linda de todas as plantas era bulbosa, de flores brancas e perfumadas. A beleza daquelas anjélicas atraiam meus olhos e alegrava minh'alma.

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    1. Oliveira, obrigado pela leitura e comentário. É interessante como um episódio do dia a dia desencadeia tantas outras lembranças, não é mesmo?

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  5. Mais um belíssimo texto, caro amigo João! Eu sempre viajo pelas ruas e lugares de nossa Santana e região. E como a simplicidade de um passeio cotidiano pode nos trazer riquezas que não imaginamos existir. Vc só pecou em não roubar o galhinho do manacá.

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    1. Júnior, obrigado. É preciso estar atento à vida e as emoções. Rapaz, eu fiquei envergonhado em roubar. Confesso!

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  6. Xará! Mais um relato com riquezas de detalhes...Quem nunca apreciou a beleza de um jardim bem cuidado?... Que nunca teve vontade de roubar uma flor? Não fazíamos porque éramos educados prá não fazer...Parabéns

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  7. Como sempre, seus textos são maravilhosos, João. Ricos em informações pertinentes, que acrescentam àqueles que têm interesse na cultura, memória e história. As suas narrativas pessoais, entremeiam a vida que e tecida e fideliza testemunalmente, páginas e páginas dessa maraviljosa construção literária.

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