O planger dos sinos


Foto: campanário Fonte: Bozo


A última e grande reforma da Igreja Matriz de Senhora Santana foi iniciada nos anos 40 pelo padre José Bulhões (1886-1952) e concluída em 1947 pelo padre Fernando Medeiros (1910-1984), conforme o historiador Tobias Medeiros em sua obra “A freguesia de Santana do Ipanema”.

 Com a reforma a Igreja matriz se construiu frontispício imponente de 35 metros de altura seguindo algumas linhas da arquitetura românica. Seu estilo poderia ser descrito como adaptação popular do erudito modelo românico. Revivalismo românico foi um estilo arquitetônico que surgiu no século XIX e existiu até as primeiras décadas do século XX. Baseou-se na reinterpretação do estilo românico, vigente entre os séculos XI e XIII durante a idade média europeia.

Eis algumas das principais características: as ogivas, que são formas determinadas por dois arcos, geralmente simétricos; a torre agulhada e o trifólio, tradição da arquitetura religiosa, que faz ligação estética entre dois elementos do conjunto e a torre principal, herança dos castelos medievais. Veja o infográfico.

Abaixo da torre agulhada estão instalados, na ordem: O relógio mecânico e na plataforma seguinte, o campanário com seus três sinos, sendo um deles, o maior, servindo exclusivamente ao relógio nas badaladas das horas.

 O relógio da matriz provavelmente foi instalado em 1946, segundo o padre e escritor José Valter, em seu livro “Memórias Religiosas de Santana do Ipanema”. O relógio se tornou símbolo regulador na vida social, visto que praticamente de toda a cidade era possível ouvir o badalejar das horas. Tornou-se guia da rotina diária, principalmente dos comerciários e estudantes. Sua máquina controlava quatro mostradores nas faces da torre. A manivela de dar corda no mecanismo parecia um grande moedor de cana que mantinha o funcionamento durante sete dias a cada acionamento.

Foto: Máquina do relógio Fonte: Bozo
         O campanário com quatro aberturas, no formato de arco ogival, completava o pavimento, embelezando o principal cartão postal da cidade.  Quanto aos sinos, teve o seu grande mestre Luís, apelidado “Major”, como o maior de todos os sineiros, segundo o historiador Clerisvaldo Chagas. Porém, não houve continuidade no ofício, extinguindo-se a atividade. Atualmente, poucos lugares mantêm a tradição.

A torre de sinos se localiza logo abaixo da plataforma do relógio. Contêm quatro aberturas para todas as direções da cidade.  O vento circula livremente no vão. Os sinos, de sonoridade grave, média e aguda, estão instalados nas duas aberturas leste-oeste para intensificar a difusão dos sons aproveitando o movimento natural dos ventos. O único sino maior, de mais ou menos 50 cm, de sonoridade grave, servia exclusivamente ao relógio no soar das horas, acionado por uma marreta de uns dois quilos. Seu som podia ser ouvido a quilômetros. Encontra-se desativado.

   O falecimento do padre Cirilo foi um dos momentos mais tristes da história do lugar. Muito se discutiu à época que o agravamento do estado de saúde do vigário teria sido em decorrência das incertezas da reconstrução da parte interior da igreja matriz que havia desmoronado a nave principal em primeiro de abril de 1982. E, com certeza, foi uma das causas. As preocupações com as dificuldades financeiras visto que uma parte da comunidade queria a reforma completa do interior para modernização e outra, defendia a reconstrução, preservando a arquitetura original. Contudo, prevaleceu o desmoronamento completo do interior para reconstrução modernista.

Em 09 de novembro de 1982, em Maceió, por volta das 19 horas, faleceu Padre Luiz Cirilo Silva aos sessenta e sete anos de idade em decorrência de complicações cardíacas.  Foram dedicados quarenta e um anos ao sacerdócio, dentre os quais trinta e um anos dedicados à paróquia de Senhora Santana.

Como contemporâneo do triste momento queria fazer algo objetivo para contribuir além da lamentação. Então, tive a ideia de que seria oportuno reativar, ainda que fosse pela última vez, o ritual fúnebre dos toques dos sinos. Durante o velório no salão paroquial busquei orientações para executar à cerimônia. A linguagem dos sinos outrora era muito utilizada fornecendo informações importantes à população, mas a falta de incentivo encerrou o costume definitivamente.

Para muita gente o som dos sinos evoca à lembrança intrínseca da espiritualidade. Os sinos dobram porque têm algo a dizer. Eis uma parte da simbologia dos sinos: enterro de irmãos - homens, três dobres de uma pancada, mulheres, dois dobres de uma pancada; crianças de menos de sete anos, repique festivo na hora do enterro. Os dobres para papa, bispo e vigário, são feitos em sentido contrário, isto é: começam pelo sino grande, prosseguindo pelo médio e terminando no pequeno. Cada exemplar tem sonoridade diferenciada ainda que aparentemente sejam iguais.

 Na manhã seguinte, o dia de sepultamento, por volta das seis horas da manhã subi ao campanário para iniciar o ritual e fazer ecoar aos ventos a notícia que uma grande pessoa havia falecido nas terras abençoadas por Senhora Santana. O rito das badaladas iniciou com um dobre no sino grande de uma pancada e um dobre no sino médio e no pequeno de uma pancada, reiniciando o processo no final, após breve pausa. O ritual de exéquias sonoro durou mais ou menos duas horas.

Confesso que os sons cadenciados e intensos foram me atingindo interiormente, provocando estado de languidez e tristeza trazendo reflexões sobre a morte, sentido da vida e a insignificância humana.

Foto: campanário        Fonte: Bozo

 Ao mesmo tempo, o repicar dos sinos foi nos transportando a uma viagem através dos sons onde pude imaginar a chegada do padre Cirilo a um dos portais do paraíso. Recepcionado pelo coro celestial com as suas trombetas e entoação de melodia sublime que nenhum ouvido humano jamais foi capaz de ouvir. Enquanto tocavam, seguia o pastor com seu cajado, em passos lentos, aos verdes campos onde ficaria a velar pelas almas daqueles a quem serviu na terra.

Enquanto executava os dobres dos sinos, um filme passava na minha cabeça trazendo as imagens do quanto o vigário tinha sido importante ao povo santanense.  Da amizade com meu pai e do apoio decisivo em momentos cruciais de dificuldades, trazendo-os de Olivença em busca de melhores condições de vida e oportunidade de estudo e trabalho para os filhos.  Atitudes que se repetiram com inúmeras famílias. Lembrei também das aulas de história no colégio estadual e das caronas no seu jipe willys dos anos 70.

Naquele dia os cantos lúgubres dos sinos anunciaram uma perda imensa. O planger dos sinos tocaram a finitude de um ciclo que se encerrava nos lembrando de que nada é pra sempre. Até os ventos murmuravam e sopravam forte no cubículo e se dispersava pelas janelas ao léu, no movimento incessante de que não pode parar seja qual tempo for. Assim somos nós!

 A cerimônia de sepultamento contou com a presença do clero diocesano e de milhares de leigos. A cada pá de terra que cobria o ataúde os sinos também foram emudecendo um após o outro.  Servem apenas de adorno à cúpula da torre da igreja. Repousam inertes condenados ao silêncio.

            Em sua lápide na igreja matriz de Senhora Santana está escrito: “exerceu o paroquiato em Santana do Ipanema durante 31 anos. Neste período foi sempre manso com os eleitos do Senhor, simples com os prediletos de Deus e apostólico, como verdadeiros ministros do altar. Agora está no céu a interceder por nós que sentimos sua ausência. Homenagem dos seus paroquianos, familiares e amigos que aqui depositam o calor de suas preces e as lágrimas de suas saudades”.

Junho de 2020


Comentários

  1. Memória privilegiada essa sua, João, para descrever fatos já longínquos, diante de tanta informação que vão se acumulando em nossas mentes. Além de inserir dados de cunho histórico em cada narrativa. Mais uma beleza de texto, a nos brindar nesse início de semana.

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  2. Me veio agora lembranças da antiga Igreja, q eu achava belíssima e imponente! Com meu grande amigo Jairo, sobrinho do Pe Cirilo, fui diversas vezes a Casa Paroquial separar hóstias e vinho, aproveitando pra tomar uns goles,vez por outra, tornando-me, assim, amigo da família e minha mãe, fã fervorosa do Pe Cirilo.
    Fui e ainda sou muito crítico pela mudança radical na arquitetura da Igreja Matriz de Senhora Santana, mas tenho lindas lembranças!

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    1. Obrigado pelo comentário Júnior. A arquitetura anterior era mais bonita mesmo.

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  3. Não sabia que os sinos estavam sem badalar.

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    1. Embora existam, deixou de ser um prática rotineira. Eventualmente são acionados.

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  4. Mais uma vez o autor nos presenteia com um texto riquíssimo em detalhes: planger dos sinos, reformas da igreja de Santana, falecimento do padre Luiz Cirilo...

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    1. Oliveira, obrigado pela assiduidade nas leituras.

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  5. Parabéns Xará! Mais um apenso com a sua assinatura... Transcrição original, recheada de detalhes que, mesmo quem não é nativo, consegue viver a emoção, sem ter vivido a ação.
    Abraço

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  6. Como tantas outras, uma belíssima obra de arte escrita. Com certeza, todos nós que lá estávamos a acompanhar a viagem do Pe Cirilo ao seio divino, fizemos uma viagem no tempo, degustando ainda da história e da arquitetura da matriz.

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    1. Joselito, prazer em tê-lo nesse espaço. Obrigado pela leitura.

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  7. Seria muito mais bonita nossa matriz se não tivessem demolido pra uma construção moderna e os gasto seriam menores

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