Olho, mas não vejo

    Outro dia, conversando com minha colega de trabalho fomos surpreendidos com a seguinte argumentação: Não vi a beleza que você disse que tinha naquele lugar! Encontrei apenas uma praia como tantas outras! Apenas sorrimos e pensamos: isso também já nos ocorreu! Como resposta, dissemos-lhe calmamente: Você não tem culpa, não é todo olhar que está preparado para ver beleza!

Ela nada nos respondeu. Desconversou, certamente não entendera, nem gostara da resposta. Tenho certeza de que, a seu tempo, essa conversa retornará às suas reflexões, qualquer dia desses. Foi assim comigo! O tempo da compreensão ainda não lhe fora concebido.

 Confesso que ficamos frustrados, porém continuamos divulgando as belezas da praia de Duas Barras, povoado de Jequiá da Praia, como uma das praias mais bonitas de Alagoas. Cenário singular que todo alagoano deveria conhecer. Paisagem estonteante. Um rio com muitas curvas que se desnudam aos olhares enternecidos antes do encontro sereno com o mar, onde tudo se torna um, emoldurado pela singeleza lírica de imensos coqueirais. 

Foto: Duas Barras, Jequiá da Praia Al

            Podemos dizer que a música nos ajuda a compreender as dificuldades e  o sentido da espera, mesmo quando tudo parece sem solução. Reflexões sobre diferentes perspectivas do mesmo tema, fluindo aprendizado e destilando maturidade que com o tempo se ampliam.

Quando ouvimos a canção “Mucuripe” de Belchior/Fagner, ficamos encantados com o lirismo dos seus versos: “As velas do Mucuripe vão sair para pescar. Vou levar as minhas mágoas para água fundas do mar...” Então, pensamos: Essa praia deve ser muito bonita! Um dia haveremos de conhecê-la! Não demorou muito para que esse dia chegasse.

Visitando Fortaleza e ansiosos por conhecer a praia de Mucuripe, saímos caminhando da praia de Iracema, até a famosa praia. Boa caminhada! Quando lá chegamos, observamos uma praia estranha, parecendo um pequeno porto, onde estavam ancoradas muitas embarcações, todas bem juntas. Causava a impressão de um grande congestionamento. Imaginamos que os barcos estavam aguardando o momento de partir para pesca, como diz a canção. Então nos perguntamos: cadê a beleza da praia que sonhamos na música? Será que recebi um nocaute poético?

            Repetimos a experiência quando em São Paulo pela primeira vez. Na cidade tudo é grandioso. Queríamos imaginar a sensação de Caetano, que decantou a cidade nos versos de “Sampa”, numa declaração de amor à cidade de São Paulo: “...alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruza a Ipiranga e Avenida São João. É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi. Da dura poesia concreta de tuas esquinas...”

   A emocão do encontro com aquele local de cruzamento das famosas ruas remetia à poesia. Fiquei meio confuso, a deduzir o sentimento do artista numa cidade colossal, que não para nunca. Buscamos razões para entender o sentido do compositor com tanta gente apressada pra lá pra cá sem tempo pra nada, numa selva de pedra. Contudo, é estado de espírito pessoal e intransferível que concebe e permite enxergar poesia no absurdo mundo real. Algo improvável para a maioria das pessoas porque não se permite a tamanha abstração e ousadia. Diz Milton Nascimento, que o poeta é aquele que sonha o que vai ser real, na canção “Coração Civil”. A beleza que permite ser enxergada a quem estiver pronto para vê-la. Caso contrário, vai olhar, contudo não vai perceber.

         Ainda com Caetano e Jorge de Altinho repetimos a experiência agora em Petrolina e Juazeiro. Duas cidades vizinhas, banhadas e unidas pelo rio São Francisco. Cada artista celebrando a beleza à sua maneira.

 Com Jorge de Altinho, somos remetidos aos sonhos juvenis e a nostalgia da partida, por algum motivo, mesmo querendo voltar, ainda que nas lembranças, ideando motivos para não se desvencilhar das raízes. Versos da canção: “... Jesus abençoou com a sua mão divina pra não morrer de saudade vou voltar pra Petrolina...”

 Com Caetano, exaltação à poesia e a admiração do seu olhar sobre o rio. A canção “Ciúme” tem os versos mais belos dedicados ao Rio São Francisco: “... dorme o sol à flor do Chico meio dia. Tudo fica esbarrado no seu lume...”

São alguns exemplos de olhares que veem de forma diferente as coisas simples da vida, que muitas vezes ignoramos. Buscar o discernimento, a percepção  eis desafios permanentes! A alegria, por fim, não está nas coisas, mas em nós. E a beleza? A beleza está nos olhos de quem, mesmo a despeito de tudo, consegue vê-la onde poucos enxergam. “E lá se vai mais um dia. E basta contar com o passo. E basta contar consigo que a chama não tem pavio. De tudo se faz canção...”. (Clube de esquina II, Milton/Lô Borges).  Quando menos se espera, uma vida! Será que vamos passar a vida toda procurando por algo que está bem à frente, a um palmo do nariz?

Exupéry, em sua imortal obra “O Pequeno Príncipe” ratifica: “... só se ver bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”. Frequentemente olhamos, mas não vemos. Não basta apenas olhar. É preciso aprender a distinguir com outros olhos, contemplar com a alma e compreender com o coração. 


 

                             (edição publicada  em 14.02.2012 e revisada em maio 2020) 


Comentários

  1. Saramago dizia que “os olhos olham, e por verem tão pouco, procuram o que deve estar faltando e não encontram.” E aí surge o poeta com sua visão panorâmica sobre os pequenos espetáculos da vida que lhe encantam e descreve a cena de outro jeito. Parabéns pelo texto.

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  2. 👏👏👏👏👏👏👏

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  3. Belíssimo texto, João. A sonoridade de cada música entrecortando as frases faz -nos refletir profundamente como é bonita a visão poética, extraindo às vezes do vazio tanto brilho que passa despercebido a tantos olhares. Nesses momentos atuais, em que nosso olhar da janela faz parte de um cotidiano lento e ainda sem luz ao fim do túnel, precisamos mais e mais vermos esses brilhos até então invisíveis.

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    1. Obrigado Fernando! Leitor assíduo com reflexões poéticas.

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  4. Muito interessante a abordagem.

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    1. Obrigado pela leitura Oliveira. Estamos sempre aprendendo...

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  5. Boa noite!
    Parabéns Xará...Mais um belo texto... Fiel nas descrições.

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  6. A blza é indiferente aos olhos de cada um e cada um enxerga a blza que melhor lbe convém. Mas o belo sempre está proximo, se buscarmos com olhos de leveza, simplicidade e apreciação. Parabéns por mais essa blza literária, caro João!

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    1. É verdade Júnior. Você disse muito bem! Obrigado pelo leitura e comentário.

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