A fábrica de sonhos

 

               Como eu poderia esquecer aquela fábrica? Como explicar os motivos escondidos que o inconsciente insiste em transbordar emoções de momentos vividos ao longo da existência?

             Nos anos setenta morávamos na avenida Nossa Senhora de Lourdes em Santana do Ipanema. Na mesma rua morava também Seu Jaime Costa, cujo ambiente familiar eu frequentava e tinha afinidade com os meninos: Júnior, Marcelo e Marconi. Com frequência, estávamos juntos em aventuras nos sítios quixabeira amargosa e remetedeira. Algumas vezes fomos a pé ao sítio remetedeira. A gente levava o próprio lanche. Ainda sinto o cheiro de rapadura guardada no bornal.

Naquela época, Seu Jaime e Seu Zé Costa, seu irmão, vulgo Zé Torreiro, tinham uma fábrica de móveis que ocupava praticamente o quarteirão ao final da Rua Nossa Senhora Fátima no sentido da BR316. A loja da fábrica “Movelaria Brasília” ficava à praça Senador Enéas Araújo.

Foto: Movelaria Brasília, ao fundo lado direito

            Nos imensos salões tinham várias máquinas de serrar e moldar madeiras espalhadas por todos os lados. O barulho ensurdecedor era frequente pelo trabalho de corte de madeira para produção de móveis residenciais. Não me lembro quais os tipos de móveis eram produzidos. 

             A gente perambulava de um lado a outro recolhendo as sobras de madeira para fazer os brinquedos. As rodas eram feitas com restos de sandálias havaianas e os refugos de madeira. Os eixos dianteiro e traseiro eram feitos de pequenos pedaços de madeira retangular fixados em pedaços de lâminas de fitas de aço usadas para embalar e amarrar caixotes, que eram descartados. Assim, o fluir dos carros ganhavam maciez e flexibilidade para trafegar nos solos de piçarra, comuns nas vias da cidade.

              Grandes janelas deixavam a luz natural invadir o ambiente. Pelas frestas das telhas quebradas, feixe de luz adentravam o salão enlevando pó de madeira de volta ao infinito.  Parecia que a essência da madeira em forma de pó da madeira ganhava vida e seguia a luz de volta a algum lugar encantado das matas de onde vieram. Enternecido, reconheço que são quimeras, apenas quimeras!

   O cheiro forte de madeira cortada e polida invadia o ar.  O bate-bate dos martelos era intenso. Era zoada de máquinas pra todos os lados.  O alvoroço e o burburinho de muita gente trabalhando nos deixavam atordoados. Era a sinfonia extrema do suor sagrado do trabalho. Aos poucos, como por magia, tudo ganhava forma e cor pelas mãos calejadas dos mestres marceneiros.

            Ali tivemos a alegria e satisfação de construir muitos brinquedos de madeira, dentre eles; caminhões, carros de passeio, incluindo carrinhos e patinetes de rolimãs que eram odiados pelos vizinhos porque danificavam as calçadas de cimento e faziam barulho infernal. Seu Costinha, comissário de menores, vivia à espreita nos amedrontando e  nos perseguindo querendo tomar nossos patinetes.

       De repente, sem perceber, crescemos. A modernidade trouxe brinquedos industrializados que mudaram os volúveis desejos dos meninos. Fazer agora, era muito trabalhoso. A criatividade foi sufocada pela facilidade. Era melhor comprar brinquedos manufaturados nos armarinhos de Pepé, Elúzia e dona Socorro Marques. O cheiro das novidades plásticas fascinava e alienava os sentidos levianos dos adolescentes.

            Certo dia,  uma algazarra numa roda de meninos no meio da rua me chamou atenção: estava o Manoel, mostrando a novidade de um carrinho andando e girando freneticamente de um lado para o outro, que funcionava com pilhas e controle remoto. Algo impensável! Foi uma revolução! Os meninos todos surpresos, inclusive eu! O brinquedo estava à venda nas lojas no centro da cidade. Porém, a gente não podia comprar. De que adiantava? Era caro. Contudo, jurei que um dia eu teria um carrinho daquele.

            E tudo foi mudando. As máquinas foram silenciadas e retiradas uma a uma. Inúteis, viraram sucata. Árvores mortas foram recolhidas. Moldaram-lhes armários de memórias abandonadas e contidas. Pessoas foram saindo entristecidas. Artesãos e marceneiros silenciosos, cabisbaixos e pusilânimes se retiraram, desceram a ladeira e não mais voltaram. Não sabemos o que destino lhes reservou depois disso, nem que rumo tomaram...

 Os salões vazios e solitários se tornaram mal-assombrados. Ainda hoje se fala de risos, gritos e sussurros noturnos inexplicados. Ficamos sérios e os caminhos mudaram de itinerário. A intensidade das brincadeiras foram diminuindo. Agora, a responsabilidade nos tornava circunspecto e pesava sobre os ombros.  

Ah, antes que esqueça: lembrei-me da promessa de ter o meu carrinho movido a pilhas com controle remoto! Bom, descuidei-me do juramento por umas quatro décadas. Antes tarde do que nunca! Eu não sabia que o mundo dos adultos era tão complexo. Nos anos 2000 comprei o brinquedo e realizei meu desejo, mas não durou muito! Meu filho quando o viu, animou-se, assumiu o controle do carro e alguns meses depois restavam apenas pedaços desprezados pelos cantos. Declamou o grande poeta Camões (1524-1580): “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...” (veja o soneto na íntegra. Clique aqui )

 Contudo, espera: nos jazigos da memória ainda encontro a fábrica de sonhos que permanece intacta.  Uma parte de mim, criança imutável no mundo dos adultos, de vez em quando reaparece rogando à reinação.

Quando passo por aquela rua fecho os olhos e tudo se torna tão presente...

Foto: Sofá produzido na fábrica de Jaime e Zé Costa, vendido na movelaria Brasilia.
Fonte: Casa dos herdeiros de Maria Ferreira Lima (1933-2018). Foto cedida por Sueli Ferreira Lima

  










                    

Publicação em junho de 2015 e revisada em maio de 2020


Comentários

  1. Parabéns pela crônica. Algumas coisas, João, nem o “Mastercard” compra. E olhe que nem falo das boléias de lata de óleo “Salada” ou “Mazolla” dos caminhões nem do “vruuum” das bochechas a reproduzir motores potentes. Falo, isto sim, do cheiro de madeira cortada e polida, de pó-de-serra misturado com suor, que trouxemos nas narinas até os dias de hoje e que ficarão conosco pro resto da vida. Amém!

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    1. Obrigado Hayton pela reflexão. Você está certo....

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  2. Mais uma bela viagem pela infância, João, montada pelos inúmeros fragmentos que continuam, felizmente, bem colados em sua memória fotográfica.

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    1. Caro Fernando, leitor habitual, obrigado. Sempre gentil nos argumentos.

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  3. Que lindo tio João, uma volta ao passado.

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  4. Que belo resgate histórico. Parabéns pela escrita, e obrigada por encantar nossos olhos e nossa imaginação.

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    1. Meus parabéns!
      Pelos belos poemas
      Meu nobre amigo
      De infância!
      E confrade !
      João Neto
      Felix
      Mendes
      Você escreve bem!
      Suas poesias sobre
      Santana são lindas!
      Você é um poeta!
      Publique o seu livro
      Para compor o acervo
      Dos poetas Santanenses
      Um abraço confrade!

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    2. Obrigado, poeta Robério Magalhães.

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    3. Obrigado Lícia pela sua presença nesse espaço.

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  5. O texto nos remete a um tempo de muita inventividade por parte de meninos e meninas desprovidos de recursos financeiros para aquisição de brinquedos em lojas e bancos de feira. Vagões de trem feitos com latas de sardinhas coqueiro e rodinhas confeccionadas com velhas sandálias havaianas. Lindas bonecas bruxa feitas de retalhos de pano. E tantos outros.

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    1. Obrigado Oliveira. A busca já era uma grande diversão.

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  6. Muito bem Xará! Belo resgate...
    É só fechar os olhos e é como se o tempo não tivesse passado.
    Parabéns

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    1. Xará, nunca esqueci a fábrica. Ali era um lugar mágico. Fascinante! O sonho ganhava vida!

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