Transcorria 1973. Se o país vivia momentos tumultuados na sua história política; cerceamento de liberdade, violência, expulsões da pátria, exílios e mortes, eu não sabia de nada disso... Eu era um menino.
Em meu peito adolescente só havia sonhos. No chão santanense, para mim, vogava o direito à liberdade; jogar futebol no calçamento a qualquer hora; brincar nas ruas; subir nas amendoeiras defronte às casas de Seu Domício Silva e de Zé Pinto e o deslumbramento das cheias do Rio Ipanema. Esse era o meu universo.
A música sempre mereceu destaque nas opções de lazer; da infância à maturidade. Seu Liô(pai) tinha muitos elepês (long-play) de vinil. Era a tecnologia da época. Lá em casa, diariamente, o rádio estava ligado nas rádios Globo do Rio e Sociedade da Bahia, tocando os sucessos do momento e informando sobre os principais acontecimentos do País. Eu ouvia o slogan, “Brasil: ame-o ou deixe-o” porém não sabia o porquê.
Seu Liô era empreendedor da comunicação possuindo, para locação, serviço volante de alto-falante incluindo grupo gerador de eletricidade para pequenas comunidades rurais nas épocas das festas religiosas. Então, os apetrechos estavam à disposição facilmente. Acoplar toca disco no rádio garantia a transformação em radiola potente, pronta para iniciar audição de inúmeros elepês. Comecei as pesquisas musicais dessa forma.
Em 1966 ganhei o primeiro compacto simples de vinil do Trio Esperança que tinha o sucesso “Garparzinho”. Ainda tenho o exemplar.
No ano o grande evento da família foi casamento de Zé Neto (José Peixoto Noya) e Leônia(irmã). Nos meses seguintes o falecimento de dona Marinita, foi momento de grande tristeza para todos os santanenses.
Alguns meses depois, o jovem casal resolveu se mudar para o apartamento do primeiro andar dos correios, para apoiar e assistir Darras Noya. No período de mudança, entre os itens restantes da mobília, fui designado para levar uma vitrola portátil philips e dois elepês: um álbum de Altemar Dutra, contendo o sucesso “Concerto para um Verão” (1972) e um compacto simples do artista Taiguara(1945-1996), desconhecido para mim, contendo duas canções de sua autoria, ambas de 1972: “Teu sonho não acabou” (ouça) e “Mudou”.
Aquele nome estranho de cantor motivou-me a ouvir as canções apressadamente. Contudo, quando as ouvi, foi conexão que transcendeu a emoção! Apesar da tenra idade foi uma surpresa maravilhosa; voz despudoradamente romântica, musicalidade sensível, moderna e letras contundentes, cativantes. Momentos de pura poesia de um artífice da música e das palavras da nova geração, solenemente desconhecido do grande público. Na época eu simplesmente gostei, não tinha essa compreensão.
Havia implícito vestígios de melancolia, comuns aos meros mortais, porém muito mais escancarada era a indubitável disposição à luta. Sincera e desassombrada era sua visão de mundo.
Zé Neto era inveterado amante da música com uma capacidade incrível de ficar horas a fio tomando suas cervejas ao som das músicas prediletas do cancioneiro nacional de diferentes estilos, na maioria das vezes, sozinho.
Não sei como tomou conhecimento do artista. Não chegamos a conversar sobre o tema. Na época, Nestor, seu irmão, estava estudando no Rio de Janeiro. Opositor engajado da ditadura militar integrava movimentos estudantis contrários ao regime. Talvez por influência dele. Nos anos seguintes, Nestor, que fazia faculdade de cinema em Brasília foi expulso da UnB pelos militares partindo para exílio no Chile, Paraguai e Suécia, fixando residência em Estocolmo e não retornando ao Brasil, exceto em eventuais visitas ao irmão. Faleceu em 2016. Suas cinzas foram depositadas no túmulo da família em Santana do Ipanema em 2017. Era o seu desejo.
Taiguara foi um dos maiores nomes da música popular brasileira, um brasileiro radicado que curiosamente nasceu no Uruguai, cujo nome, em tupi-guarani, significa “livre”, deixando um repertório de muita qualidade, lirismo e combatividade. Jamais sucumbiu às pressões típicas da ordem repressora como o regime ditatorial implantado pelas forças armadas no Brasil desde 1964. Muito cedo viu que o curso de Direito era muito pouco e pequeno, deixa a faculdade e passa a se dedicar à música.
Frequentou as paradas de sucesso das rádios e os festivais de música nos anos 60 e 70 com melodias bem elaboradas, como: “Hoje”, “Universo no Teu Corpo” e “Que as Crianças Cantem Livres”.
Em 1970 lançou o álbum "Viagem", um marco em sua carreira e um dos discos fundamentais para conhecer melhor sua trajetória. Além de ser um dos trabalhos mais significativos da música brasileira. O disco tem participações de Zé Rodrix, Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas e Lindolfo Gaya. A Faixa inicial era a mais famosa; "Universo no seu corpo" e a última faixa "A viagem", um de seus maiores sucessos e sem dúvida, um momento mágico de inspiração em sua carreira.
Ganhou notoriedade não apenas pelo conteúdo da sua obra, mas também pela militância contra a censura. Para se ter uma ideia Taiguara teve, mais ou menos, cem composições vetadas pelo crivo da ditadura militar. Entre 1973 e 1975 estabeleceu-se Londres, numa espécie de autoexílio.
Ao voltar ao Brasil os problemas com a censura ficaram ainda mais intensos, chegou a ter um espetáculo vetado pelo regime militar. Frustrado, deixa novamente o Brasil e por muitos anos perambulou pelos Continentes africano e europeu. Só voltaria ao Brasil em meados dos anos 80.
Ele se expôs muito, mais do que os outros. Quanto mais ele era censurado, mais crítico ele ficava.” Em “Tinta Fresca”, por exemplo, foi incisivo: “não me queixo do meu fado / não se eu quiser me deixar sair / me abre essa porta / e me deixa sair / ou dizer o que eu quiser”. A provocação só instigou a má vontade do departamento de censura. “Os incomodados que se mudem, pois, as portas do nosso Brasil sempre estiveram abertas para sair os indesejáveis”, reagiu o censor, em comentário escrito de próprio punho na folha que trazia a letra da canção. Sua obra pagou o preço da perseguição e da censura.
Desde o primeiro momento senti evidente sincronismo com a obra do artista; uma das mais belas vozes, pianista exímio, letrista romântico, libertário e sinceramente realista. Curioso é o fato de que o veto da censura a parte do seu trabalho ocorre pela sensualidade explícita nas suas canções.
Revi depoimento do cantor, compositor e violonista Toquinho (Antônio Carlos Pecci, 1946) sobre o artista, onde o reconhece como cantor, compositor e pianista talentoso, cuja liderança se destacava entre os artistas da época no Rio de Janeiro e em São Paulo para onde depois se mudou.
Recordo-me que no velório de Zé Neto, em 2016, relembrei parte desses momentos de descobertas que se constroem ao acaso e que a vida segue seu ritmo a despeito de tudo. A arte permanece e faz diferença na vida das pessoas cujo resultado só a magia do tempo pode revelar.
Voltando ao passado, posso ratificar que a admiração intuitiva à obra do artista foi crescendo ao longo do tempo e se fortaleceu após quase cinco décadas.
Que a música é linguagem universal, sabemos! A música tem a chave e livre acesso aos esconderijos mais secretos da alma. Mas, quem nunca buscou a música como abrigo psicológico às frustrações, protestos ou canto de louvor ao amor e às vitórias da vida? Aquelas canções pareciam ter sido feitas sob medida para o meu lenitivo.
Na vida a gente influencia e é influenciado; sequer percebemos! Às vezes falta-nos argúcia para tal compreensão. Formamos uma grande teia onde todas as coisas estão interligadas de alguma forma. Eis um grande mistério existencial.
“Fiz do piano a viola/ Fiz de mim mesmo o amigo/ Fiz da verdade uma estória/ fiz do meu som meu abrigo/ Quem canta fala consigo/ Quem faz o amor nunca quer ferir/ Quem não fere vive tranquilo/ Ver muita gente sorrir/ ... Sorriso bom, só de dentro/ Ninguém é bom sendo o que não é/ Eu pra ser feliz com mentira/ Melhor que eu chore com fé”. (O piano e a viola) Taiguara. (ouça)
Foto: Taiguara Chalar da Silva |
Texto maravilhoso! Uma breve parte da história, que incorpora o célebre compositor, intérprete e grande pianista que fora Taiguara...na verdade essa interlocução, poucos a conhecem...quero registrar o meu contentamento pela viagem e conhecimento adquiridos com esse texto. Parabéns primo João!
ResponderExcluirMais uma bela crônica, João, fazendo-nos viajar por esses momentos que, certamente, como eu, foram comuns a tantos que amam a música como uma das mais belas formas de arte. Ferreira Gullar já disse que "a Arte existe porque a vida não basta", e a música é uma dessas vertentes que preenchem muitos dos nossos vazios.
ResponderExcluirFernando, obrigado pelo comentário e reflexão!
ExcluirObrigado primo!
ResponderExcluirParabéns Xará! Belos registros...
ResponderExcluirApesar de não ter vivido a minha infância, integralmente, em Santana, os seus escritos me remete a boas lembranças.
Que Deus te ilumine.
Amém Xará. Obrigado!
ExcluirMuito bom texto. Gostei muito dos links do tipo “ouça” justamente em pontos cruciais, onde a memória auditiva amplia o prazer da leitura. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado Hayton. Semanalmente acompanho suas maravilhosas crônicas.
ExcluirMuito bacana o texto
ResponderExcluirObrigado. Valeu!
ExcluirCaro João Neto, parabéns pelo ótimo texto. Voltei no tempo ao lembrar-me das andanças em Santana do Ipanema, onde trabalhei e deixei grandes amigos. Abs!
ResponderExcluirObrigado pela leitura e comentário.
ExcluirValeu William. É muito bom a gente voltar a manter contato.
ResponderExcluirObrigado pelo contato Luiz.
ResponderExcluirTio João parabéns pela crônica. Quanta emoção! Nunca decepciona, detalhes que nos fazem viajar no tempo. Obrigada
ResponderExcluir