Templo das artes - Cine Alvorada


Foto: Fachada do Cine Alvorada Fonte: autor

             A grandiosidade do Cine Alvorada impressionava. Um prédio naquelas dimensões numa pequena cidade do sertão de Alagoas era um feito histórico. Construído nos anos 60 pelo santanense Sr. Tibúrcio Soares, no mesmo modelo do Cine Albatroz, no bairro Casa Amarela, na cidade do Recife. Esmero e ousadia foram marcas indeléveis do empresário. O engenheiro civil responsável pela obra foi o Sr. Carlos Wanderley. Sua fachada moderna e imponente se destacava na Praça Manoel Rodrigues da Rocha.

Foto: Inauguração Cine Alvorada Fonte: Acervo Wagner Torres
         Inaugurado em 1962, com capacidade para 800 pessoas, com as presenças de diversas autoridades, dentre elas: o Padre Cirilo, Ex-Governador Arnon de Melo, Elesbão de Carvalho, Prefeito de Maravilha, Manoel Barros, João YoYô, Eraldo Barros e Cleto Duarte, além do proprietário, Tibúrcio Soares. Luxuoso, o empreendimento elevou a cultura local.
     Na área central do hall entrada, cavaletes ofereciam à vista cartazes chamativos dos próximos lançamentos. Os sofás de napa azul-celeste, na charmosa sala de espera eram curvados, no lado direito de quem entrava. Design sofisticado, acompanhando a tendência romântica dos móveis dos ambientes chiques. 

         Nas paredes do lado direito, vários quadros de aviso exibiam cartazes das atrações vindouras. Naquela época só havia uma sessão por noite. Mais de uma projeção, somente aos sábados, domingos e datas festivas. Aos domingos havia uma exibição vespertina para o público infanto-juvenil. 

       No canto da sala de espera, um grande espelho preenchia todo o espaço, causando-nos a impressão de que aquele ambiente era bem maior do que realmente era. Cada transeunte, que por ali passava, tinha em si, o impacto visual da própria imagem. Luxo incomum para a ingenuidade do povo do lugar. 

          No lado esquerdo de quem entrava estava a lanchonete, com arquitetura moderna e ampla visão. Quem estava fora via quem estava dentro e vice-versa. Amplo sortimento de balas, guloseimas, lanches, refrigerantes e assemelhados. 

         Após a subida de vários degraus, adentrava-se à imensa sala de exibições por dois longos corredores. Impressionava a grandiosidade! As incontáveis filas de cadeiras de madeira marrom, com assentos dobradiços, tomavam conta do ambiente. No lado direito do prédio, ficavam as saídas para os banheiros masculinos e a saída de emergência. Os banheiros femininos estavam localizados abaixo da área da tela de projeção. A plataforma do espaço da tela também servia de palco para apresentações musicais e programas de auditório. 

      Assistimos aos shows dos artistas Balthazar e José Augusto, dentre outros. Vimos despontar o talento irrefutável do cantor santanense Waldo Santana, além de grandes vozes dos nativos: Dotinha, Guilherme, Genivaldo Barbosa e Sílvio Bernardo, dentre outras. O animado comunicador e radialista Chico Soares comandava os programas de auditório com transmissão ao vivo da emissora de rádio local. Apresentações performáticas do cantor seresteiro, de voz gravíssima, Manoel Teles, vulgo “Caçador”. O cinema ficava lotado. O público vibrava com os seus artistas prediletos. 


Foto: Pinturas na parede                Fonte: autor

        O ambiente artístico absorvia-nos, silenciava-nos e nos convidava à contemplação dos murais de pinturas sertanejas nas paredes laterais. Traços pretos delineavam vidas negras e inertes que ganhavam alma nos olhares dispersos de gente anônima, escancarando a realidade da idiossincrasia de quem somos, com sutileza e magia. Vozes do sertão gritavam e nos chamavam à meditação da condição humana através da exaltação da estética do simples, sem voz e sem vez! 

       Ficávamos boquiabertos com tanta beleza! Eram pinturas cubistas retratando o cotidiano do semiárido nordestino: vegetação, trabalho, lazer, feira, trovadores, utensílios, lavadeiras, donas de casa, vaquejada, artesanato, caça, zabumbeiros, rio, pesca, água, homens, mulheres e costumes da roça. Os desenhos e as cores encantavam até os incrédulos. Só se deixava de olhar para os murais quando as luzes se apagavam sinalizando início da sessão, obrigando-nos a assistir ao filme. Não havia outro jeito, era quase uma catarse! 

        Os murais tinham aproximadamente 5 x 30 m(150m²) de cada lado. Para se ter ideia dessas dimensões, “Guerra e Paz” são dois painéis de, aproximadamente, 14 x 10 m(140m²) cada um, produzidos pelo pintor brasileiro Cândido Portinari, entre 1952 e 1956. Os painéis foram encomendados pelo Governo Brasileiro para presentear a sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York. 

        Com o auxílio de Enrico Bianco e de Maria Luiza Leão, os painéis “Guerra e Paz” foram pintados a óleo sobre madeira compensada naval. Enquanto um é uma representação da guerra, o outro representa a paz. Por seu trabalho com os painéis, Portinari foi agraciado em 1956 com o prêmio concedido pela Solomon Guggenheim Foundation de Nova York. 

        No caso do cinema, obra magistral do singular pintor caruaruense, Seu Reginaldo Luís de França, falecido. Restaram memórias, fotos, reconhecimento e gratidão do povo santanense ao pintor que nos proporcionou tantos momentos de sonhos, silêncios e o olhar inquieto de admiração. 

       Segundo seu filho, herdeiro da arte e do nome, seu pai era um artífice de placas luminosas em acrílico, que andava pelos sertões divulgando, vendendo e instalando a novidade nos estabelecimentos comerciais. Nas horas vagas, exercia o ofício da pintura, sua grande vocação. 

       Não há registros de quanto tempo durou o trabalho. O lado esquerdo da sala fora pintado pelo Sr. Reginaldo. Já o lado direito, foi parcialmente iniciado pelo autor e complementado pelos santanenses Dotinha e Cícero Lopreu. Segundo o filho, ele mesmo misturava as cores primárias para criar novas tonalidades das tintas a serem utilizadas nas pinturas. O certo é que Seu Tibúrcio o escolheu porque era o melhor pintor que havia na região. 

        Autor de inúmeras obras tombadas pelo Patrimônio Cultural de Pernambuco, dentre as quais citamos painel em exposição no “Museu da Feira”, na cidade de Caruaru. Há outras obras espalhadas pelo Brasil e até no Exterior. 

       Da sala de exibições, no lado esquerdo de quem entrava, havia outro lanço de escadas ascendentes para o mezanino, que era ambiente com capacidade mais ou menos de 70 pessoas. Do mezanino, outra subida de degraus conduzia à cabine de projeções. 

         Na sala de equipamentos, 02 máquinas Philips, de fabricação Holandesa, projetavam as imagens na tela a mais de 30 metros de distância. As máquinas eram a carvão, como se identificava. Na verdade, eram de grafite, revestido de cobre, no formato de um lápis. Dentro da máquina, continham dispositivos elétricos alinhados e móveis, contendo dois polos. 

         Nas extremidades dos polos eram fixados os carvões; de um lado, um negativo e outro, positivo. Energizados, ao se tocarem, provocavam curto circuito, iniciando a queima do grafite. Durante a projeção várias unidades eram consumidas. Devidamente ajustados, a queima produzia intensa claridade. Essa luz, muito forte, refletida por um espelho, passava por um tubo onde ficava o cabeçote da máquina, iluminando a imagem da película que por ali deslizava, e, ao mesmo tempo, reproduzia a imagem na tela à distância. Outro dispositivo, regulava a nitidez da reprodução. A pista de som (sound track) era o espaço para a informação sonora, disposto transversalmente numa das laterais da película, entre o fotograma e as perfurações de encaixe nas carretilhas. A pista de som magnético parecia tiras de cor marrom constituídas de material magnetossensível. 
Foto: Máquina do projeção 

      As películas dos filmes eram armazenadas em caixas metálicas para evitar danos ao material e garantir proteção nas viagens de uma cidade para outra. Os rolos de fitas de um filme de uma hora e meia eram guardados em cinco ou seis caixas metálicas. Atualmente os filmes têm armazenamento digital e distribuição via internet. 

      O projecionista é um profissional solitário e essencial às salas de cinema. Ofício de controlar e ajustar equipamentos na cabine de projeções. Os projecionistas desde a inauguração, foram José Gomes, que também era eletrotécnico e Dema, falecido. Caso curioso é que o Dema foi encontrado morto na cabine de projeções nos anos 90, tal era seu apego e dedicação ao trabalho. Nessa época, o cine já havia paralisado as atividades, mas ainda mantinha a estrutura original, embora bastante depreciada.  Leia o conto "Quatro mortes e nenhum funeral" nesse blog.

      Quem quiser conhecer a visão poética do ofício de projecionista veja o filme “Cinema Paradiso” (assista)produção franco-italiano de 1988, do gênero comédia dramática, escrito e dirigido por Giuseppe Tornatore e musicado por Ennio Morricone. Resumindo: Salvatore Di Vita é um cineasta bem sucedido que vive em Roma. Um dia ele recebe um telefonema de sua mãe avisando que Alfredo está morto. A menção deste nome traz lembranças de sua infância e, principalmente, do “Cinema Paradiso”, para onde Salvatore, então chamado de Totó, fugia sempre que podia, depois que terminava a missa (ele era coroinha). No começo, ele costumava espreitar as projeções através das cortinas do cinema, que o padre via primeiro para censurar as imagens que possuíam beijos, e fazia companhia a Alfredo, o projecionista. Foi ali que Totó aprendeu a amar o cinema. Assistam, o filme é sensacional! 

     A tela era enorme! Uma cortina de tecido azul-marinho a embelezava. De repente, as luzes se apagavam. O som forte estremecia tudo. A mesma música de sempre tocava ao abrir as cortinas. Os corações se aceleravam impulsionados pela força da emoção! “Il Silenzio”, de 1965, música de Nini Rosso (1926/1994) compositor e trompetista de jazz italiano.(Ouça) Ela parecia empurrar as cortinas azuis que escondiam e protegiam a magia da grande tela branca. 

      Enquanto a música era executada e a cortina se descerrava, três quadrantes luminosos gigantes no teto nas cores amarelo, vermelho e azul iam se acendendo um a um, emitindo um som que parecia toque grave de um grande sino. O ritual sonoro e luminoso estava sincronizado com o tempo de abertura das cortinas e a execução da melodia. Era espetacular! 

     Um dos momentos marcantes das sessões no cine alvorada era a vinheta da condor filmes, uma distribuidora que anunciava seus filmes. A abertura mostrava o voo de um condor. Os espectadores brincavam de “enxotar” a ave que aparecia na tela. Começavam a gritar “Xô, xô, xô...!”(veja aqui) Ou a vaiar para espantar a ave. Era uma algazarra, pois obviamente o bicho “obedecia”. O condor (Vultur gryphus) é uma ave da família dos catartídeos, parente próximo do condor-da-califórnia e dos urubus, que habita a cordilheira andina, na América do Sul. 

     O show do futebol do canal 100 não podia faltar.(clique aqui) A exibição de trechos de clássicos de futebol carioca no maracanã era uma festa, ao som do clássico brasileiro “Na cadência do samba (Que bonito é)”. Era uma agitação emocionante. As câmeras de gravação ficavam bem próximas ao gramado. As cenas eram contagiantes, visto que a gente parecia estar dentro do gramado, próximos aos jogadores. 

      Os primeiros filmes exibidos, quando da inauguração em 1962, foram: “Os Paladinos de França” (1956) e “Tormenta sobre o Nilo” (1955). Dependendo da “fita”, a fila dobrava a esquina, aguardando o atendimento das duas bilheterias. Como sempre, os filmes mais famosos ficavam vários dias em cartaz. Foram os casos de “Doutor Jivago”, com Omar Sharif e Julie Christie, em 1965; “Dio Come Ti Amo”, com Gigliola Cinquetti e Mark Damon, em 1966; “2001, uma odisseia no espaço”; “O Dólar Furado”, com Giuliano Gemma, Ida Galli, em 1965; com o tema marcante “Assim falou Zaratustra”, em 1969; a série “Poderoso Chefão”, iniciada em 1972; “O Exorcista”, em 1974, com atuação magistral de Linda Blair e efeitos arrepiantes. Não podiam faltar os filmes dos Trapalhões e da dupla Teixeirinha e Mary Terezinha, especialmente "Coração de Luto".

      Seu Costinha, rigoroso comissário de menores, não permitia descumprimento da idade de censura. Vários meninos tentaram assistir ao filme “O Exorcista”, censura 18 anos. Todos foram impedidos, inclusive eu. Sinésio “Caboclo” era porteiro educado e gentil, flexível às transgressões dos limites de idade. Descendente da tribo Fulni-ô, também exercia a profissão de pintor. 

       Logo que se chegava, antes de começar qualquer sessão, o som da sala tocava os sucessos da época que inebriavam os expectadores. Ouça a canção "Olhando estrelas" Muita gente bonita descia pelos dois corredores, observando as pessoas, especialmente casais e grupos de amigos, nas cadeiras, conversando. A maioria saboreando chicletes “Adams”, comprados na lanchonete da elegante sala de espera. Sem falar na caixinha vermelha de uva passa “sun-maid” que era vendida no carrinho de doces de “Chica Boa”, diariamente estacionado próximo à bilheteria do cinema. Na hora da compra a gente chamava D. Francisca. Pronunciar o apelido era uma afronta desmedida e esculhambação certa. 
Foto: caixinha de uva passa vendida por D. Francisca

     Mesmo durante o dia, aos domingos, antes da matinê, o movimento era grande. As crianças faziam o maior furdunço, enquanto os meninos e as meninas adolescentes iam à lanchonete do cinema para tomar sorvete e refrigerantes; guaraná “antárctica” da garrafinha, coca-cola e crush. 

      O bom da matinê era a torcida. Quando o mocinho ficava em apuros com índios e ou bandidos de toda a espécie, chegava a ajuda da cavalaria, anunciada ao som de um trompete agudo e forte. Todo mundo batia os pés no chão e o alarido ganhava dimensões da vibração de gol, numa grande conquista. 

       Ir ao cinema era mais que assistir aos filmes. Era um evento social. Era um jeito de ver gente bonita, namorar, paquerar, curtir de forma especial o final de semana. Havia todo um ritual; a melhor roupa, o perfume, o melhor sapato, com a namorada ou amigos, a noite sempre prometia... 

      Em 1970, a família do Sr. Tibúrcio Soares mudou-se para Maceió. O cinema foi locado ao empresário Paulo Ferreira, inicialmente. A venda foi concretizada alguns anos depois. Nos anos 80, outros administradores tentaram manter a mesma qualidade dos serviços, mas não foi possível. A estrutura era muito grande para se manter rentável. 

      Os hábitos e os costumes foram mudando. A ascensão tecnológica da TV e vídeo cassete influenciaram o declínio do cinema nas cidades interioranas. No final dos anos 90 as atividades já estavam totalmente paralisadas. Por um período foi templo e eis que um milagre aconteceu: 

       Numa noite enluarada de verão, enquanto a cidade dormia, um clarão prateado invadiu o salão principal. Ao mesmo tempo, começou uma chuva fina criadeira, molhando todas as pinturas que escorriam as tintas pretas e disformes para o chão. Nesse ínterim, a chuva de prata animou as gravuras e todas ganharam vida num espectro prateado e transparente. Era um milagre da transfiguração poética. E assim, as figuras tomaram as formas originais de seres animados e encantados. Uma a uma, enfileiradas, foram em direção à saída do prédio, prestando reverência ao Seu Tibúrcio, Seu Reginaldo Pintor e ao Dema. Integraram-se ao cenário da vida real em lugares que não se sabe. Tornaram-se guardiões da arte. 

      Naquela madrugada de luz e mistério, embora quase ninguém saiba, diz-se que, uma vez por ano, durante a lua cheia do mês de novembro, tudo retorna ao lugar original reiniciando o ritual silenciosamente, condição do Mestre Criador para que continuem o itinerário de arte, êxtase, peregrinação e transcendência. 

      Através do cinema aprendemos a mirar para dentro de nós e ver o mundo com outros olhos, de outras perspectivas. Aprendemos a sonhar e acreditar que a arte permanecerá. Mesmo que não haja mais Cine Alvorada, mesmo sem as pinturas maravilhosas de Seu Reginaldo, dos shows e dos programas de auditório, jamais esqueceremos da magia do querido Cine Alvorada. Mesmo quando a gente não estiver mais aqui estas palavras continuarão a navegar indefinidamente nas ondas invisíveis da era digital e da informação, onde quase tudo existe e resiste às intempéries. 

       Entretanto, nada terá mais valor do que o testemunho de um olhar anônimo, no meio da multidão, que revolucionou a si mesmo com o auxílio das artes. 


Painel na residência de Rosiane, Filho de Seu Tibúrcio Fonte: Rosiane


Publicação em novembro de 2018, revisado em novembro de 2019

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