O passageiro


Foto: Uneb Campus Paulo Afonso BA
 O primeiro dia de aula do curso de pedagogia na Universidade Estadual da Bahia-UneB, Campus Paulo Afonso, foi para formação das equipes que iriam desenvolver os trabalhos acadêmicos no decorrer do curso. Inicialmente, sobraram os alunos de Alagoas, e apenas um colega da Bahia, Charles. Então, formamos o grupo, incluindo o Charles que havia ficado de fora dos outros grupos. Foi o início da jornada. Chegamos a um novo tempo: século XXI.

Eu trabalhava em Delmiro Gouveia e, ao final da tarde, viajávamos a Paulo Afonso para o campus da Uneb. O ônibus municipal ia praticamente lotado todos os dias. A ida, no final da tarde e a chegada, perto da meia noite. Era uma dura jornada, mas muito proveitosa pelo curso e as amizades construídas.

Eu tinha o dobro da idade do Charles, no auge dos seus vinte e poucos anos. Em pouco tempo de convivência, criamos fortes laços de amizade. Ele me chamava de “meu cérebro”.  Eu achava engraçado aquilo. Charles era o sujeito mais animado da turma e tudo era motivo de brincadeiras e risos.

Justamente nesse período, a banda Capital Inicial havia lançado seu cd do show acústico MTV. Eu havia comprado a fita vhs do show e o Charles pediu para eu levasse o cartucho para assistirmos antes de iniciar a aula já que na sala havia uma TV com videocassete. Sua música predileta, entre as boas canções do show era a versão “O Passageiro”.

Como viver ultrapassa todo entendimento, muita coisa estaria por vir. Eis parte dos versos da canção:Eu sou o passageiro / Eu rodo sem parar /Eu rodo pelos subúrbios escuros / Eu vejo estrelas saindo no céu/ É o claro e o vazio do céu / Mas essa noite tudo soa tão bem/ Olha o passageiro / Como, como ele roda / Olha o passageiro / Roda sem parar / Ele olha pela janela / E o que ele vê? / Ele vê sinais no céu! / E ele vê as estrelas que saem! / E ele vê a cidade em trapos! / E ele vê o caminho do mar! / E tudo isso foi feito pra mim e você/ Tudo isso foi feito pra mim e você/ Simplesmente pertence a mim e você / Então vamos rodar e ver o que é meu...” (ouça)

A cada dia o Charles se integrava ao grupo, tornando-se muito querido pelo seu entusiasmo e bom humor. Quando se referia a mim, não escapava o codinome: “meu cérebro!”. Eu ria e dizia: deixa de loucura, rapaz... Era uma graça! Naquela época, ele trabalhava numa empresa que prestava serviços à Eletrobrás, nas comunidades rurais, registrando o consumo de energia elétrica e emitindo as faturas. Nos deslocamentos diários ele utilizava uma motocicleta.

Foram bons e breves momentos de convivência! Encontrar os colegas da faculdade era um alento em meio a tantas dificuldades vividas, naquela época, pelo trabalho e corre corre. Lembro-me, agora, da festa religiosa em homenagem a São Francisco de Assis, celebrada anualmente em outubro, em praça próxima à Universidade.


Foto: Igreja S.Francisco Paulo Afonso Ba.


A Igreja de São Francisco de Assis é cartão postal da cidade! Construída em 1949 sobre pequena colina, tem estrutura em pedra da própria região, lembrando uma capela medieval. A nave tem 90m2 e sua bancada de madeira comporta 60 pessoas. Na parede de fundo a imagem de São Francisco de Assis, o padroeiro da cidade, está impressa em alto relevo.

Nas paredes laterais, as estátuas de São Judas Tadeu, Nossa Senhora da Conceição e de São José, além dos quadros que representam a via-crúcis de Jesus. Fomos eu, Charles e outros colegas para uma disputa de tiro ao alvo, com setas, nas barracas instaladas nas imediações. Não me recordo dos desempenhos, porém isso pouco importa! Participamos do bingo e da quermesse. Foram bons instantes de descontração!


Admirador nato das coisas do sertão, quando ele me falou da reserva de caatinga “Raso da Catarina” e que tinha parentes morando na região, fiquei entusiasmado para conhecer. Combinamos perambular pela caatinga nas próximas férias da faculdade. A região mais inóspita do semiárido brasileiro, localizado no norte da Bahia entre os municípios de Paulo Afonso, Jeremoabo, Canudos e Macururé, esta o “Raso da Catarina”. Inicialmente, pertencente a índios da tribo Pankararés, atualmente a localidade é uma Área de Proteção Ambiental (APA) e Estação Ecológica, fiscalizada pelo Instituto Chico Mendes. Com área de 99 ha é dividida em reserva biológica e indígena, onde vivem os indígenas. Essa área de reserva biológica de caatinga é considerada única no mundo.

O Raso recebe esse nome porque seu relevo é quase toda sua totalidade, plano com vegetação rasteira e Catarina é em homenagem a proprietária da Fazenda Catarina, que existe até hoje na região. Diz a lenda, que a fazendeira lutou contra a seca, mas foi derrotada por uma nuvem de gafanhotos que devorou a plantação de milho e feijão, deixando-a em estado de loucura e sozinha até o fim da vida. Dizem que seu espírito vaga a localidade ajudando vaqueiros a encontrar animais perdidos.

A seca é comum no Raso. Com temperatura que chega a atingir 43º C é difícil até se refrescar nos rios que cortam a região, pois a grande parte tem vida curta e o único que se mantém é o Vaza-Barris que forma o açude de Cocorobó. É difícil encontrar água por lá. É preciso muita sabedoria e astúcia, já que elas se escondem nas depressões nas rochas ou em locais onde o lençol de água subterrâneo fica próximo à superfície.

O Raso da Catarina foi cenário de aventuras e esconderijo de dois famosos cangaceiros, o líder social Antônio Conselheiro, fanático religioso e revolucionário e o cabra-macho Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião. O Homem Santo, como ficou conhecido Conselheiro, lutava pela justiça social afirmando que “roubar para se alimentar, não é crime” e com essa máxima ele ganha notoriedade entre os sertanejos e se torna uma “figura santa” entre os homens. No ano da libertação dos escravos pela princesa Isabel (1888), muitos dos escravos libertos, sem residência e trabalho viajam em busca do “bom jesus” e encontram em Conselheiro um líder religioso e social.

Tudo seguia seu destino até que, meses depois, de repente, recebi um telefonema de uma colega da turma de Paulo Afonso dizendo que o Charles havia falecido vítima de acidente entre a motocicleta que ela guiava a trabalho e uma carreta, numa estrada próxima a Paulo Afonso. A notícia foi assim: lacônica e paralisante! No acidente, o impacto da batida fora tão forte que a motocicleta ficou presa entre o pneu e a suspensão dianteira da carreta impedindo que o veículo se movimentasse.

A morte precoce do Charles foi um choque! Não sabíamos o que dizer, nem o que expressar. Fomos informados que o seu sepultamento seria no dia seguinte, no início da tarde, no Povoado Olho D'água de Souza, zona rural do Município. Deslocamo-nos no dia seguinte para o local informado e, em virtude de questões legais, o corpo fora levado para realização de necropsia em Feira de Santana a 370 km, retardando o velório.

Passamos a tarde inteira aguardando pelo funeral na comunidade rural.  A espera de cerimônia fúnebre é cruel e enigmática; paralisa, emudece e torna tudo cinza ao redor.

Quando a urna funerária chegou já escurecia. Houve um breve momento de oração na Capela de Nossa Senhora da Saúde na comunidade, onde estavam seus familiares e parte dos seus colegas da faculdade. A solenidade fúnebre precisou ser abreviada porque já era noite e a iluminação, precária! Ainda assim, fizemos breve e emocionante homenagem escrita pelo professor de sociologia, Dorival. Eu fui escalado para ler, mas infelizmente não tive condições emocionais de prosseguir com o discurso, pois estava às lágrimas! Então, repassei a prédica a outrem. Ao final, seguiu o séquito rumo ao cemitério.

Assim como o dia se despede da noite, despedimo-nos abruptamente do jovem amigo, ficando a saudade e tantas incógnitas de uma vida bruscamente interrompida. À sombra de um jasmineiro em flor, foi sepultado seu corpo, passageiro da alegria.

Aquele foi um dia de muita tristeza para a comunidade universitária, os amigos e familiares. Os corações e a barra do tempo enegreceram. A lua minguou até se ocultar. O sol se retirou e guardou sua luz. Parece que tudo parou. Todas as vozes se calaram e o silêncio se fez maior. O luto se fez sentinela nas asas dos corações feridos... Até o despertar do romper da aurora, onde tudo recomeça frio e indiferente impulsionado pela urgência de prosseguir. O certo é o que virá!

Prosseguimos com os estudos com a mesma equipe dantes formada, porém com uma alteração: outra colega de Paulo Afonso pediu para integrar o grupo, substituindo o Charles, sendo prontamente acolhida. Naquele resto de ano, havia sido designado um trabalho em equipe e a minha casa foi o local de encontro do grupo do estudo. Recordo-me até do tema estudado: “O afeto e sua influência no desenvolvimento cognitivo”.

Naquele sábado à tarde, estávamos reunidos na minha residência, em Delmiro, para discussão e relatoria da pesquisa. A colega de Paulo Afonso veio e se juntou ao grupo. Em certo momento, ela pediu para ir ao banheiro.  Depois de alguns instantes, veio correndo, branca como uma folha de papel, dizendo que, quando olhou o espelho do banheiro afirmou que viu o rosto do Charles, que inclusive falou com ela, afirmando que estava ali para participar do estudo. Ficamos paralisados e estupefatos! Como eu não sabia o que dizer, sugeri para que dissesse a ele que estava entre amigos que ficasse em paz! E assim, aos poucos, os ânimos arrefeceram. Naquela tarde não tivemos mais condições psicológicas de concluir o relatório. Rezamos uma oração pela paz e descanso de seu espírito!

Durante meses o acontecimento correu de boca em boca. Porém, há fatos que não podem ser explicados, simplesmente! Os mistérios insondáveis devem ser guardados e venerados como relíquias.

No ano seguinte, após uns meses de estudos, eu fui transferido de Delmiro Gouveia para Arapiraca onde passei a residir. Retornei a Paulo Afonso anos mais tarde, como convidado, para a festa de formatura da minha turma de pedagogia. Recordo-me, com emoção, da homenagem póstuma prestada ao Charles pelos pedagogos recém-formados.


Foto: Pedagogos formandos em 2006


Eu não voltei a estudar a pedagogia, nem conheci o Raso da Catarina. Foi necessário trilhar outros caminhos. Contudo, jamais esqueceremos o Charles, da sua breve e luminosa existência e de tudo que foi vivido naqueles anos. Como diz o ditado popular: “Tirando o motorista e o cobrador, o resto é tudo passageiro...”


Foto: Homenagem prestada pelos formandos Fonte: Shirlei(irmã)

Texto publicado em 12.09.2018

Comentários

  1. Lindas palavras!!! Lembro como foi difícil ouvir a notícia de sua morte e também repassa-lá aos amigos. Charles era um ser leve e de alegria! Deus o guarde em um bom lugar.

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    1. Ana, obrigado pelo seu comentário. É um prazer voltar a falar contigo. Conviver com vocês naquela época foi muito significativo para mim. Eu adorava estudar pedagogia. Infelizmente não pude continuar o mesmo curso. Sou grato a todos pela convivência e aprendizado.

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  2. Shirlei Vieira01/05/2020, 19:29

    Prezado João Neto,

    Meu nome é Shirlei, sou irmã de Charles. Ontem recebi um link que me direcionava para uma linda e emocionante homenagem feita por você para o meu inesquecível irmão. Me emocionei com cada palavra, confesso que foi bem difícil terminar a leitura, essa época que se aproxima do aniversário dele são ainda mais difíceis para nós aqui em casa (Sim, hoje, 01/05/2020 ele estaria completando 41 anos). Hoje é um dia muito sofrido para nós! Receber sua mensagem em homenagem ao meu irmão foi como um conforto de Deus. Minha mãe tem o CD que ele havia comprado e ouvia muito, muito, muito aqui em casa, O Passageiro era a música predileta dele, sem dúvidas.
    Em nome da família, gostaria de te agradecer imensamente, por sua demonstração de amizade, carinho e respeito. Espero um dia poder te conhecer pessoalmente e poder te dar um abraço, como forma de retribuição.
    Deus te abençoe.
    Gratidão!

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    1. Prezada Shirlei, Boa tarde!

      Tomei um susto quando recebi sua mensagem. O coração voltou a bater acelerado porque nunca imaginei um dia ter contato com a família do Charles. Na verdade foi uma surpresa ótima! Fico lisonjeado por você ter tido a iniciativa de me escrever. O que você relata é muito instigante. O texto foi escrito em 2018 e, na época, eu enviei para a única colega da faculdade que ainda tenho contato: Luciene Novais. À época eu pedi para que reenviasse aos colegas com quem ela tinha contato, mas não imaginei que pudesse chegar até vocês. Entretanto, o meu "susto" tem também outras razões. Tudo que se refere entre mim a história de Charles tem um certo mistério, mesmo tanto tempo depois. Eu escrevo crônicas e contos desde 2003 mas não tinha meu próprio espaço. Eu queria gerenciar minhas publicações. São poucas, mas são escritas com muito zelo e dedicação. Então, depois eu comecei a republicar tudo que havia sido produzido em outros espaços. E aí fui escolhendo a esmo a ordem dos textos. Pois bem: algo me pedia para incluir esse texto logo. No início da semana eu o coloquei como rascunho e novamente me senti instigado para liberar a publicação. Devo lhe dizer que eu não sabia a data de aniversário do Charles. No dia 29, fiz um contato com a Luciene, pelo zap, para confirmar umas informações da época, mas ela ficou em dúvida também. Enfim, decidi publicar assim mesmo, ontem dia 30. Reenviei o link da publicação apenas a Luciene, único contato daí. No meu íntimo, estava querendo pedir a alguém da minha turma para que o fizesse chegar a alguém da família, haja vista que o fato ocorreu há mais de 15 anos. Entendeu agora o meu susto? Nada foi programado, aconteceu naturalmente pela força espiritual. Rezamos também pelo descanso de sua alma.

      Minha convivência com o Charles foi pouca, mas a gente tinha forte ligação. Eu era como um irmão mais velho, um confidente. Foi um tempo de dificuldades com longas jornadas de trabalho. Estudar e reencontrar os colegas era um alívio. O Charles era muito engraçado. Sobre a canção que você afirma ser a predileta dele, eu também não sabia. A gente gostava do show completo, mas ele não me falou explicitamente sobre a sua predileção da canção "passageiro".

      Olha, em todas as circunstâncias da vida são as mães as que mais sofrem. Rezemos também pelas mães que sofrem a perda precoce dos seus filhos. Porém, tudo na vida tem um sentido, mesmo que a gente aparentemente não concorde. Eu não acredito em destino, vai de encontro com o livre arbítrio. Entretanto há mistérios entre o céu e a terra que não podem ser explicados simplesmente pela razão, mas pela fé. Portanto, quero dizer que devemos rezar por ele e por todas as pessoas falecidas das nossas famílias e amigos. Por todos aqueles que nos ajudaram a chegar até aqui de uma forma ou de outra. Eles não podem mais fazer isso por eles mesmos, somente nós que ainda estamos nessa caminhada.

      Um forte abraço para você e, quando puder, transmita um abraço especial para sua mãe. Não tenho dúvidas de que Charles descansa em paz! Que a paz esteja convosco!!

      Até breve. Quando eu for a Paulo Afonso, entrarei em contato. Não vai demorar. Quero fazer uma visita ao local do sepultamento.

      Abraço.

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