Não sei explicar por que a sétima arte me fascina desde menino. Quisera fosse algo transcendental. O cinema no interior não era simplesmente o deleite de assistir aos filmes. Era ponto de encontro dos amigos e local predileto dos namoros. Romances se iniciaram no cinema e perduraram. Outros nem tanto. Vida real e fantasia se misturavam.
Foto: Cine Alvorada, Santana do Ipanema AL
O Cine Alvorada era suntuoso. O ritual de início das sessões era um espetáculo à parte: Enormes cortinas azuis protegiam a tela de exibição, que se abriam automaticamente ao som de “O silêncio”, do trompetista Italiano Nini Rosso, 1965. Veja e ouça aqui. Três quadrantes luminosos enormes e nas cores amarelo, vermelho e azul, no teto, iam acendendo um a um, enquanto durava a música, sinalizando que a projeção iria iniciar.
As pinturas das paredes laterais do imenso salão pareciam um museu dos nordestinos. Em segundo plano, via-se uma palheta de cores harmônicas aplicadas no formato de figuras geométricas intercaladas, como se fosse uma grande aquarela. Em primeiro plano, desenhos enormes contornados em preto, retratavam a vida cotidiana dos sertanejos. Tudo se apresentava harmonioso, fantástico e belo. Estar naquele ambiente estimulava as emoções, dando vazão aos sentimentos.
Naquele palácio das artes, éramos súditos privilegiados. Lá também aconteciam shows de cantores famosos, programas de auditório e até eventos de luta livre. Era um centro de convenções.
As máquinas de projeção eram importadas. Seu operador, Dema as tratava com muito zelo. Era o ator principal e solitário das projeções diárias. Dedicava-se àquela arte intensamente. Aquele trabalho era sua vida. Aprendera a operar as máquinas pela observação.
Foto: Máquina de projeção Phillips
Além dessa função, exercia outra de igual importância: discotecário. Responsável pela seleção dos temas musicais que tocavam antes do início das sessões. Várias canções foram imortalizadas pelas suas mãos. Ainda hoje as pessoas lembram... Sua realização estava no trabalho solitário, nos bastidores, estimulando à construção dos nossos sonhos.
Eu e tantos outros garotos só podíamos assistir às sessões do domingo à tarde. Não tínhamos idade para frequentar outro horário, com raras exceções. Às vezes, durante a sessão, ficávamos torcendo para que as fitas dos filmes quebrassem durante a projeção, pois para corrigir o problema era necessário cortar alguns centímetros da película. Instante ideal para correr à sala de máquinas para implorar ao projecionista que abrisse a porta e nos deixasse entrar para pegar os pedacinhos das fitas para improvisar cinema em casa para os amigos. Algumas vezes ele permitia.
Com uma caixa de sapato recortada nos lados menores, uma lâmpada incandescente transparente queimada, sem conteúdo, cheia d’água e uma lanterna. Com esses itens, projetavam-se as imagens inertes das películas nas paredes de casa ou na rua. Eram momentos de realização e deslumbramento!
Com o passar do tempo a gente não queria mais que os filmes quebrassem, pois significava que as luzes seriam acesas e nos pegavam no flagra na intimidade do namoro. Desconcertante! Agora a preferência era do escurinho do cinema.
O Cine recebeu uma homenagem: O ambiente interior fez parte do filme “O Baile Perfumado” (Clique para assistir) que ganhou o festival de cinema em Brasília em 1996, como melhor filme. Na cena, Lampião vai ao cinema assistir a um filme. Um santanense radicado em Recife e integrante da trupe levou o elenco à cidade, parece que antevendo uma morte anunciada.
A chegada do vídeo cassete representou para o cinema nas cidades interioranas, morte definitiva. Golpe de misericórdia! Não havia mais como manter aquela estrutura. As pessoas vibrando com a novidade tecnológica deixaram de frequentar às salas cinematográficas. Vários anos se passaram tentando manter o entretenimento, sem sucesso. Não perdemos tão somente a diversão, foram-se também encontros e relacionamentos...
Dema era negro, esguio e fumante compulsivo. Introspectivo, era homem de poucas palavras. Continuava a sonhar com a reabertura do cinema para retomar seu labor diário. Com assiduidade perambulava pelo prédio silencioso e sombrio, imaginando o momento da reativação. Ali passava praticamente o dia todo. Como nada aconteceu e pouco poderia fazer, a angústia foi tomando conta da sua vida e o alcoolismo passou a dominar seus dias.
Com frequência limpava as velhas máquinas inoperantes, aguardando o momento do apagar das luzes e reinício das sessões.
Até que um dia escolheu aquele lugar para dar seu último suspiro. Sozinho, faleceu na sala de projeções ao lado das máquinas que foram suas companheiras inseparáveis e testemunhas silenciosas da sua partida. Êxtase e agonia.
Naquele local de trabalho, de sonhos, de vitórias, de derrotas, de romances e amores inabaláveis, foram as lembranças constantes dos seus últimos momentos. Fora encontrado morto dois dias depois. Diante daquela cena de tristeza real, só restou sepultamento às pressas, sem funeral...
Na década de setenta o primeiro longa-metragem preto e branco produzido em Alagoas “A Volta pela Estrada da Violência”(clique para assistir) foi gravado em Santana do Ipanema, dentre outras localidades. Vários figurantes eram pessoas queridas, péssimos atores, mas a sociedade queria vê-los na tela, ainda que por alguns instantes. É a magia do cinema.
Eu tinha conhecimento de que esse material ainda existia e estava guardado no próprio cinema, mofando em algum lugar. Então como que procurando um tesouro, autorizado pelo proprietário, vasculhei o prédio e encontrei as caixas das películas jogadas em velhas gavetas de armários abandonados na sala das máquinas como algo imprestável.
Retirei o material para tentar preservar o que restava. Porém, algo ainda me inquietava. Desejava ver o velho cinema funcionando, nem que fosse somente para mim. Seria necessário reativar as máquinas para testar o material recuperado. Dema morrera há anos e eu crescera.
O menino agora era homem feito e não conseguia me desvencilhar do velho cine, nem queria. Era um símbolo real de tantos sonhos.
Lembrei-me de Dema, imaginei que aquele lugar também fora seu. Eu via o cinema da mesma perspectiva que ele, da sala dos projetores. Eu me sentia grande naquele local. Pude imaginar o que tudo aquilo significava para ele.
Após alguma articulação e aquisição de umas peças, conseguimos que as velhas máquinas voltassem a funcionar por alguns instantes. Aquele barulho das engrenagens rodando era mágico! Como testemunhas, estavam lá, junto comigo, alguns amigos dos velhos tempos. Assistimos aos últimos 15 minutos do filme “A volta pela estrada da violência”. Pudemos reviver a fantasia do moribundo cinema!
Contudo, o espectro da morte se aproximava. O dono do prédio, resolveu vender o que restara. O salão estava deteriorado; a tela queimada, o teto desabando e as cadeiras quebradas. Ratos e morcegos eram os moradores.
Foto: cine deteriorado Fonte: autor
Por fim, o cinema foi transformado em Igreja. Quem sabe Deus tem pena de nós que não sabemos preservar nossos valores, costumes e crenças. Declina a tarde. Anoiteceu. A sessão iniciou e o encanto inebriou nossas vidas. O “the end” se aproxima. Voltei ao mundo real. Viver não é preciso e sonhar, necessário. Dema, que nos assiste das estrelas continue a velar por nós!
Conto escrito em 1997 para participar do concurso literário "Alagoas em Cena". Revisado em 2019.
Conto espetacular. Cenas de uma paixão desmedida, de um resgate emocionante e, como sempre acontece, com um fim trágico, como toda a carga dramática inerente ao tema. Parabéns pelo modo brilhante com que nos ofereceu a última sessão de um sonho.
ResponderExcluirValeu. Obrigado!
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