Nos anos oitenta trabalhamos na recém-instalada agência do Banco do Brasil de Poço das Trincheiras. Exercendo o cargo de supervisor, Tonho Cupim sempre fora pessoa eloquente, espirituoso e contador de muitos casos. Atualmente está aposentado, morando em Maceió, desfrutando do seu merecido descanso. Certa ocasião, contou-nos o seguinte episódio acontecido com ele em Palmeira dos Índios:
Estava ele passando pela praça São Pedro em Palmeira dos Índios, num dia de feira, quando de repente, algo lhe chamou atenção. Atento ao alvoroço dos transeuntes, percebeu um tumulto na praça! Diz o ditado popular: "a curiosidade matou o gato!" Pois bem, lá se vai o protagonista saber o que estava acontecendo no meio da multidão. Era uma rodada de cantoria entre dois repentistas.
Segundo o blog “verso encantado” o repente, ou cantoria, é uma das principais vertentes da poesia caracterizada pelo uso de rima e métrica. Chegou ao seu apogeu se aperfeiçoou ao longo de décadas no Nordeste, hoje conta com mais de 30 estilos poéticos e se caracteriza por genuína brasilidade.
Segundo o grande pesquisador e folclorista Luís da Câmara Cascudo, o desafio dos repentistas do Nordeste descende diretamente do Canto Amebeu, dos pastores da Grécia Antiga. Tal hipótese carece de estudos historiográficos que a comprovem.
Vários ensaios apontam para uma possível ligação entre a figura do cantador do nordeste brasileiro e a do trovador da Provença, sul da França, do início do segundo milênio. O trovadorismo floresceu em Portugal, no século XII. Identificam-se também influências dos árabes do norte da África que colonizaram a Provença e a península ibérica.
A primeira forma de improvisar versos no Brasil é provavelmente a glosa, que em várias regiões do Nordeste é compreendida como prática em que o poeta fala ou declama versos feitos na hora, obedecendo aos preceitos de rima, métrica e oração poética, em geral versos septissílabos, desenvolvidos a partir de um mote.
Um dos primeiros grandes glosadores brasileiros foi Gregório de Matos e Guerra (Salvador, 1636-1695). Não se sabe ao certo quanto tempo ele levava para o desenvolvimento de suas glosas, mas é fato a ampla repercussão que tomou sua produção poética.
A arte hoje conhecida como cantoria ou repente teve origem na segunda metade do século XIX, na Serra do Teixeira, sertão da Paraíba, região onde os primeiros repentistas começaram a travar desafios de repentes. A maioria desses primeiros repentistas cultivava o hábito da leitura, da escrita e vivia da agricultura, comércio e outras atividades, sendo o resultado financeiro das cantorias uma renda complementar.
No início do século XX, o número de repentistas já era grande em vários estados do Nordeste. Estimativas mais recentes apontam para poucos milhares entre profissionais e amadores. Em 2010 foi sancionada a Lei que estabelece a profissão de repentista.
Na configuração que tomou durante o século XX, a arte do repente se caracteriza pela ação dos cantadores que, em dupla, tocam violas com afinação regra inteira ou nordestina e cantam alternadamente estrofes rimadas compostas no momento da apresentação. Os repentistas utilizam estruturas pré-definidas com relação à métrica e melodias pré-existentes, as toadas, que são compartilhadas por esses artistas e, em muitos casos, se desconhece a autoria das mesmas.
Ressalto que a remuneração desses artistas sempre fez parte do rito das cantorias, fosse ela como retribuição espontânea ao atendimento de um tema e boa abordagem, como compra de ingresso ou como cachê acordado com o organizador do evento.
Existem mais de 30 modalidades de Repente. De acordo com a modalidade, os versos podem ser de 4, 5, 7, 10 ou 11 sílabas rítmicas e as estrofes, em maioria, são compostas por 6, 7, 8 ou 10 versos cada. Em certas modalidades, alguns dos versos componentes das estrofes são pré-definidos, com os quais são rimados versos improvisados. Dentre as modalidades mais usadas estão: Sextilhas; Mote de Sete Sílabas; Mote Decassílabo; Martelo Agalopado; Galope à Beira-Mar; Mourão e Coqueiro da Bahia.
Após esse hiato explicativo, voltemos ao intento principal. A cantoria seguia nas improvisadas e animadas frases rimadas onde qualquer tema poderia ser cantado. E, ao final de cada resposta, a algazarra do público se destacava no quarteirão com as provocações e respostas dos repentistas.
Ele, simpatizante do movimento popular, queria a todo custo assistir ao embate dos cantadores, porém a aglomeração da plateia improvisada impedia visão mais próxima.
Todavia, como sujeito perspicaz que sempre foi, resolveu o problema com criatividade, pensando: -vou subir no poste ao lado e ver tudo de posição privilegiada, de camarote! Então, sorrateiramente subiu no poste de iluminação pública até certa altura, o suficiente para assistir à apresentação dos repentistas.
Nesse ínterim, o cantador desafiado, perdeu o assunto. E isso acontece! Entretanto, a retomada é imediata. E a criatividade, instantânea! Qualquer detalhe serve. Foi quando, em tempo, o cantador olhou para cima e viu Tonho Cupim no poste, empolgado com o evento. Aproveitando a oportunidade e inspiração, rapidamente respondeu ao seu opositor, apontando para Tonho Cupim:
-Esse aí tá atrepado / Sai daí caba safado / Do cabelo de guará !!!!
O intrépido Tonho Cupim foi alvo de chacota da praça inteira e nada restou senão descer do poste, cabisbaixo e se esgueirar para evitar o que ainda fosse possível daquele ultraje satírico, peculiar aos cantadores, porém vexatório ao ilustre espectador.
Publicação em 2006, revisado em dezembro de 2019
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