Nos anos oitenta tornei-me assíduo frequentador das missas vespertinas na Igreja Matriz de Senhora Santana durante um certo tempo, não sei exatamente quanto. Padre Cirilo era o vigário da paróquia.
Padre Cirilo |
O interior do prédio era simples, mas muito bonito. Seu estilo poderia ser descrito como adaptação popular do erudito modelo românico. Revivalismo românico é um estilo arquitetônico revivalista que surgiu no século XIX e existiu até as primeiras décadas do século XX. Baseia-se na reinterpretação do estilo românico, vigente entre os séculos XI e XIII durante a idade média europeia. Sua nave principal era sustentada por cinco colunas, de cada lado, em arco côncavo contínuo.
Além da nave havia duas alas laterais contíguas no mesmo nível. O altar-mor ficava alguns degraus acima, na mesma linha de direção da nave principal. No frontispício do altar-mor, construído em alvenaria, havia três nichos ornamentados por inúmeros adornos em alto-relevo na forma de arcadas duplas. As arcadas superiores eram adornadas por pequenos orifícios circulares simbolizando joias cravejadas de brilhantes. Os nichos eram guardados por pilastras retas, colunas circulares e outros adereços simbolizando uma fortaleza e sua riqueza celestial sob a vigilância de dois anjos, um de cada lado, portando cetro com luzes que iluminavam o altar.
Na parte central, destacava-se o nicho maior, onde ficava a imagem da padroeira Senhora Santana, adornada especialmente por treze rostos alados de anjos. Os nichos laterais continham as imagens de São José e São Vicente de Paulo. Pouco abaixo ficava o sacrário do Santíssimo Sacramento.
Na ala direita, havia um altar lateral em forma de concha que abrigava a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sobre uma árvore, e ao redor, os três meninos portugueses, ajoelhados: Lúcia, Jacinta e Francisco, conforme a aparição.
Na ala esquerda, outro altar no formato de concha abrigava a cruz do Cristo Crucificado. Segundo historiadores, a cruz encravada na parede havia sido esculpida pelo Padre Francisco Correia, o evangelizador das terras santanenses. Sob o balcão do altar, havia um relicário com a imagem do Senhor morto na posição deitada, com cabelos longos postiços e coroa de espinhos. Imagem realista de tamanho natural evocava à reflexão da paixão e morte de Jesus Cristo, sob a vigilância piedosa de imagem de Nossa Senhora das Dores com seu manto azul.
Adiante, do mesmo lado, próximo ao altar-mor destacava-se, pendente, exuberante lustre de cristal, com uma lâmpada vermelha permanentemente acesa indicando a presença do Santíssimo Sacramento.
Por ser um dia de semana, havia poucos paroquianos. Algumas pessoas colaborativas e que gostavam de cantar, ficavam mais próximas ao padre, nas primeiras bancas, para assessoria e condução dos cantos litúrgicos. Eu estava entre aquelas pessoas.
Outrora, o coral ficava no balcão existente sobre a entrada principal da matriz. Uma discreta escadaria de alvenaria no formato helicoidal dava acesso ao ambiente. Subi, várias vezes, acompanhando meu pai, quando criança. Ele tocava um pequeno órgão acionado por pedaleiras, chamado harmônio. Naquela época era o único instrumento que acompanhava os cantores. Dali a visão era privilegiada.
Foto: Altar-mor da Igreja Sra Santana, anos 70
Fonte: Acervo de João Neto Felix Mendes
Eu gostava de olhar para o grande quadro com a pintura de Senhora Santana ensinando à Virgem Maria, fixado no forro da nave central. O termo arquitetônico “nave” é originário do grego “naos”, referente ao espaço fechado de um templo, e do latim medieval “navis”. A nave é o termo referente à ala central de uma igreja ou catedral onde se reúnem os fiéis para assistirem ao culto religioso. Era uma pintura a óleo com mais ou menos uns três metros de comprimentos por um e meio de largura, de autoria ignorada. Foi Senhora Santana quem preferiu que o quadro se espatifasse no chão quando a nave desabou em 1982, do que machucar alguém.
O batistério, no lado direito da entrada do templo, observava-se uma belíssima pintura do Batismo de Jesus, de tamanho real, de autoria ignorada.
Durante a missa o momento do ofertório costuma passar quase inadvertido, mas é um momento importantíssimo, talvez o de maior participação dos fiéis na missa. É importante saber e levar sempre em consideração que, no pão e no vinho, estão representados todos os dons de Deus que, no sacrifício, voltam a Ele.
O ofertório é o momento de oferecer nossas vidas ao Senhor, oferecer-nos com tudo o que somos e temos. E essa oferenda depois nos é devolvida pelo Senhor transformada nele mesmo.
Naquele dia tudo parecia absolutamente normal. A celebração se iniciou e prosseguia, como de costume. O canto do ofertório tem a função de acompanhar e solenizar a procissão na qual os fiéis apresentam as oferendas, pois Deus ama quem dá com alegria.
Tudo parecia como de costume enquanto se cantava o cântico do ofertório.
{Sabes, Senhor,
{O quem temos é tão pouco pra dar,
{Mas esse pouco,
{Nós queremos com os irmãos compartilhar
Queremos nesta hora,
Diante dos irmãos,
comprometer a vida,
Buscando a união.
{Refrão}
Sabemos que é difícil,
Os bens compartilhar,
Mas com a tua graça,
Senhor, queremos dar.
{Refrão}
Olhando o teu exemplo,
Senhor, vamos seguir,
Fazendo o bem a todos,
Sem nada exigir.
{Refrão}
De repente, algo inusitado aconteceu: Padre Cirilo gesticulou para o coral que precisava sair emergencialmente, nos pedindo para que continuássemos cantando até a sua volta. Achamos o fato estranho, porém prosseguimos normalmente.
Cantamos o hino, pelo menos umas vinte vezes, até porque não sabíamos outro. A demora foi aproximadamente trinta minutos. A situação era esdrúxula, tanto quanto engraçada. Nós já estávamos desesperados sem saber o que fazer. Quando enfim, reapareceu o pároco, enrubescido, sorrindo e arrumando os paramentos sacerdotais.
Naquele momento entendemos que o padre tinha tido uma tremenda dor de barriga e tinha ido à privada. A disenteria fora violenta. Depois de reassumir o altar, mandou-nos encerrar o canto, prosseguindo a celebração para a salvação de todos nós pecadores, graças a Deus. Ninguém ousou perguntar nada.
Que situação. O Padre gostava de queijo de manteiga que comprava lá no bar sto antonio
ResponderExcluirNinguém está livre da agonia que se tem, quando o desarranjo se aproxima. Nem os de mais crenças conseguem orações que suspenda a avalanche (rsrsrs).
ResponderExcluirTirando o aspecto cômico, o texto tem uma narrativa com uma riqueza de detalhes impressionante. Haja memória
Chagas, permita-me apropriar da sua contextualização...depois da sua narrativa ficou difícil falar algo a respeito desse texto maravilhoso...
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